Desde a primeira revolução industrial (século 18) o consumo de energia elétrica experimentou uma expansão fantástica tornando-se, sem dúvidas, um dos bens mais importantes para o mundo da produção e para a sobrevivência humana. O noticiário recente, ao apresentar depoimentos das pessoas que foram afetadas pela falta de energia elétrica na região metropolitana de São Paulo, apenas por poucos dias, evidenciou com eloquência o impacto econômico e emocional que foi provocado. Mobilizou governador, prefeitos e Governo Federal clamando por solução rápida e com certa garantia por estabilidade para que desastre não ocorra mais, pelo menos como aconteceu nos últimos anos.
O crescimento da demanda, ao longo dos dois últimos séculos até a essencialidade atual deste “insumo”, exigiu o desenvolvimento de uma indústria extremamente complexa e portadoras de muitas incertezas que exigiram, e ainda exigem, desenvolvimento tecnológico, bem como a evolução de nova especialidade nas instâncias públicas, que é capacidade para regulação.
No Brasil, desde o Código de Águas de 1934 (Getúlio Vargas), regulando inclusive a concessão para geração de energia, passando pelos investimentos em grandes usinas hidroelétricas (nas décadas de 1960 a 1980, principalmente), o processo de privatização, desverticalização, abertura de mercado e implantação das estruturas de regulação que se tornaram mais necessárias são marcos importantes da evolução da economia da energia.
Inicialmente o segmento era composto por empresas públicas que, grosso modo, eram além de monopólios naturais regionais verticalizados, que operavam em toda a cadeia da produção até a distribuição, da qual predomina até hoje a geração hidroelétrica. As reformas introduzidas no setor estabeleceram segmentação de funções e muitos novos atores: geradoras, transmissão de longa distância, distribuição, ANEEL (agência reguladora), ONS (Operador Nacional do Sistema), CCEE (Câmara de comercialização de energia) que opera a nova possibilidade introduzida de livre contratação de energia para consumidores de maior porte. Sem dúvida, foi modernizada a organização industrial do setor com vista a maior concorrência, bem como expectativas de dinamizar os investimentos requeridos para novos e crescentes padrões de consumo.
De outro lado, na sociedade iniciava uma nova revolução tecnológica com base nas tecnologias de comunicação (TIC) com profundas transformações em todas as dimensões da produção e da vida humana. O uso intenso dos computadores, com todas as suas demandas de suporte e de segurança cibernética, amplificou ainda mais a demanda por energia elétrica, além de consagrar sua essencialidade para a vida contemporânea. Em paralelo, as ameaças climáticas exigiam novas fontes de geração de energia mais limpa, promovendo avanços significativos na tecnologia de geração trazendo novas alternativas: solar, eólica, biomassa, etc.
Semana passada a consultoria Inventta divulgou o seu estudo Panorama do Setor Elétrico – Macromovimentos e Tendências mostrando que o setor está vivenciando, sobre muitos aspectos, “um período dos mais desafiadores de sua história”. As fontes alternativas de renováveis, que já representam 88% da matriz elétrica nacional, são bem-vindas, porém, sua expansão já com mais de 3 milhões de micro e mini usinas solares conectadas à rede, que somadas às unidades eólicas já representam 1/3 da matriz energética nacional. Ocorre que estas fontes são intermitentes, posto que dependentes do sol e do vento. Gerenciar esta característica nos sistemas de transmissão, de distribuição e a relação com a geração hidráulica, não é tarefa trivial. De fato, impõe enormes desafios para a regulação, bem como de avanços tecnológicos.
Chamou atenção no estudo a informação sobre o peso espetacular das demandas de energia dos datacenters instalados e dos novos projetos na pauta. Um novo negócio que vem da revolução tecnológica das TIC, conforme já comentamos.
Enfim, para nós consumidores fica claro que se não houver planejamento, público e privado sério nos próximos anos, investimentos, desenvolvimento de tecnologia, avanços em capacidade de regulação para lidar com estes principais agentes de transformação estaremos sob risco de crises frequentes de abastecimento.
Vale resumir o que o estudo aponta como agentes de transformação: a geração distribuída (sua intermitência), o mercado livre (estímulo à concorrência, supostamente na expectativa de maior eficiência empresarial), os data centers e a digitalização da rede, não caminham sozinhos. Eles exigem reequilíbrio regulatório, modernização da infraestrutura e novas competências organizacionais.
*Guilherme Henrique Pereira é doutor em Ciências Econômicas, autor do livro Economia, Governos e Suas Políticas e diretor executivo do Instituto Gestão e Desenvolvimento Sustentável – IGEDS ARANDU.
