Gustavo Varella – “Alô, garotada, o tio vai desenhar”

Lá pelos idos de 1976, eu, menino, assistia na TVE (um dos três canais “abertos” que existiam em Vitória) a um programa chamado “A Turma do Lambe-Lambe”, onde uma figura bem interessante, multitalentos e educador autodidata chamado Daniel Azulay usava o bordão do título para começar um quadro ensinando as crianças a desenharem, mas, principalmente, em linguagem simples, apropriada à faixa etária, falando sobre as coisas que desenhava, mostrando como eram, funcionavam e existiam. Eram tempos em que informações eram limitadas, mas conhecimentos valiosíssimos, o oposto do que hoje impera.

Há alguns dias, esperando um colega para almoçar, fui surpreendido por dois adolescentes em uniformes da Escola São Domingos que, com a típica curiosidade estimulada naquele fantástico ambiente educacional, primeiro “confirmaram” se eu “era advogado” e, depois, perguntaram se podia “dar uma ideia” sobre um tema bem em voga, marcadamente sobre “se o Xandão era isso ou aquilo, como andavam ouvindo”.

De início, disse a eles que não achava legal o uso de apelidos para um Ministro do Supremo Tribunal Federal. Coisa minha, sei lá, porque determinadas intimidades, principalmente quando unilaterais, banalizam conceitos e valores como o de “Autoridade”, nos quais um agente público é investido, goste-se ou não dele.

Depois, como procuro fazer desde meu primeiro contato com uma turma de graduação em Direito, despi-me ao máximo das paixões e subjetivismos que, muitas vezes, contaminam discussões relevantes, principalmente quando envolvem elementos técnicos, e, na sequência, passei a “desenhar” para os garotos o que julguei interessante, talvez antevendo a possibilidade de um deles, ou ambos, daqui a alguns anos, aproveitarem alguma coisa em carreiras jurídicas porventura escolhidas.

Ao cabo desses 15 ou 20 minutos de agradável conversa, eles se despediram agradecendo minha atenção, mas a minha “recompensa” colhi da percepção de que saíram da conversa duplamente alegres: menos pelo que conseguiram absorver, mais porque alguém se dispôs a ouvi-los em suas dúvidas, compartilhando algo apreendido e útil.

Como advogado há mais de 35 anos, não raro me surpreendo com debates travados sobre assuntos e fatos que, embora alguns de altíssima complexidade, são tratados de maneira agressiva e irrefletida por pessoas sabidamente ignorantes, todavia inversamente ousadas em seu protagonismo. Num misto de distanciamento analítico e fobia de parecer-me ridículo (cuidado, que não vejo em alguns a quem não envergonha opinarem com ares doutorais sobre o que nem pronunciar direito sabem), quando o repto demanda minha “opinião profissional”, tenho-a expressado o mais objetivamente possível, evitando as nuances passionais, preferências pessoais e perspectivas íntimas, já que, penso eu, na “bolsa de valores imateriais” que regula a nossa sociedade, um ativo chamado “respeitabilidade” requer tempo longo para crescer aos olhos dos “investidores”, mas seu colapso pode se dar instantes após manchada sua essência.

Dito isso, e lembrando do Daniel Azulay dos tempos de infância e dos garotos especiais da referida conversa, resumi o que contei a eles, sem deslembrá-los de que, no ambiente do Direito, verdades absolutas são tão ou mais perigosas do que mentiras consagradas.

Primeiro, disse aos dois que não há, no Brasil, nenhum dispositivo legal ou garantia constitucional que permita a alguém descumprir uma ordem judicial por “julgá-la” ilegal, cabendo a quem não gosta do que lhe foi determinado recorrer a um Tribunal imediatamente superior, que poderá manter ou reformar o decidido, conforme dispõe a lei aplicável e outros elementos (disse-lhes “fatos”) que constam daquele processo.

Em segundo lugar, registrei que juízes de direito (menos ainda ministros do STF) não acordam pela manhã e saem fazendo o que lhes der na veneta, ajudando amigos ou atrapalhando inimigos conforme humores ou interesses de ocasião, porque cabe a eles avaliar, concedendo ou negando, o que promotores, delegados ou advogados lhes pedem em petições fundamentadas (disse-lhes “bem explicadas”), contendo a descrição de tudo que julgam importante para conseguirem seus objetivos, já que, lembrei, essa decisão, positiva ou negativa, será depois examinada por seus colegas ou por autoridades maiores, que poderão igualmente mantê-la ou reformá-la.

Por terceiro, asseverei que mesmo que nos pareça indiscutível o que defendemos, imaculadamente inocentes ou irremediavelmente culpados os que representamos ou enfrentamos num processo, nossas opiniões e argumentos serão confrontados com outros contrários para que a pessoa encarregada de decidir a questão possa fazê-lo de maneira clara e justa, já que, se assim não fosse, o que existe para resolver conflitos terminaria por piorá-los.

Em quarto plano, registrei que, por melhores que sejam advogados, juízes, promotores e outros profissionais aos quais foi confiada a tarefa de atuar em uma causa, eles não podem (muito embora a ciência seja dinâmica e em constante aperfeiçoamento) fazer seu trabalho inventando fórmulas e meios que lhes pareçam mais inteligentes ou eficientes do que aqueles regrados (disse-lhes “determinados”), porque, como ocorre com um cirurgião (usei como exemplo o pai de um deles, médico conceituado), a quem é confiada a vida de seu paciente, os direitos que são submetidos aos que lidam nesses casos não os pertencem, mas a quem representam: pessoas físicas, jurídicas ou, até mesmo, a sociedade.

Na sequência, em quinto ponto, expliquei que a Polícia Federal não age como o porteiro de um condomínio, cumprindo ordens do síndico de plantão, porque é uma carreira de Estado (nesse ponto tive que detalhar mais), e seu papel é investigar e agir no limite de suas atribuições e competências, jamais atender caprichos e desmandos de seus superiores hierárquicos, já que estes passam, e a instituição fica.

Por fim, fiz questão de explicar a eles que a Constituição e as leis que formam nossa estrutura jurídica (aqui fiz uma analogia com um edifício de apartamentos) não são como aquelas massinhas plásticas da pré-escola, formando figuras que podíamos depois aumentar ou diminuir, amassar tudo e refazer, porque são “tijolos, vigas e colunas” que sustentam uma grande estrutura. Convidando-os a refletir sobre o que poderia acontecer caso fosse permitido a qualquer pedreiro afoito, ou pessoa desagradada com uma parede no primeiro andar ou com a posição de uma pilastra no terceiro, simplesmente derrubá-las para tornar o ambiente ao seu gosto.

Despedindo-me, sugeri aos mesmos que sempre buscassem avaliar o que lhes aparecesse na vida por tantos ângulos quanto pudessem, já que, mesmo profundamente diferentes entre si, duas ou mais coisas não são melhores ou piores umas das outras por conta disso. E, depois, que por mais irritantes ou difíceis lhes fossem algumas pessoas, tratassem-nas com o mesmo respeito que mereciam delas, eis que somos “espelhos” que, opostos uns aos outros, refletem exatamente o que enxergamos de nós mesmos. E eles, de si próprios.

*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

*A opinião do articulista é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a posição do portal News Espírito Santo

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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