A atuação do Judiciário brasileiro, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF), tem sido frequentemente colocada em destaque durante crises políticas. Discutir de forma saudável o papel desse Poder é fundamental para o fortalecimento da democracia. No entanto, diversos obstáculos dificultam a construção de um debate verdadeiramente sadio e construtivo sobre o tema.
A intensa polarização política no Brasil tem contaminado o debate público. Muitas vezes, análises sobre decisões judiciais são filtradas por preferências partidárias, levando à desqualificação automática de argumentos contrários e dificultando a busca por consensos mínimos ou pela compreensão plural das decisões judiciais. Soma-se a isso uma compreensão distorcida de diversas ideias e ideologias que permeiam essas discussões, quase sempre impregnada por discursos messiânicos. Esse cenário revela não apenas a imaturidade própria de sociedades em formação, mas também os efeitos das desigualdades brutais entre as camadas da população, que esgarçam ainda mais o tecido social, agravando problemas históricos e fomentando o dissenso.
Nesse contexto, alternam-se aqueles que mascaram ações estritamente corporativas, partidárias ou vinculadas a outros interesses sob o disfarce de atuações parlamentares ou institucionais, divorciadas de seus reais propósitos, e os que se aproveitam das mazelas já graves não para minorá-las, mas para rotular “o outro lado” como exclusivo responsável por elas. Em ambos os casos, o real intento é a manutenção de privilégios próprios, apresentados como legítimos e necessários, enquanto os opostos são rotulados como vergonhosos, espúrios ou criminosos.
Quando fatos ou questões de grande repercussão são levados ao exame do Poder Judiciário — o que tem ocorrido com frequência cada vez maior —, o que antes ficava restrito a determinados segmentos passou a ocupar o espaço público, sinalizando uma visível mudança de interesses e de temas. Não por acaso, se nas décadas de 1970, 1980 ou 1990 era quase impossível encontrar um brasileiro que não soubesse o nome de pelo menos cinco jogadores da Seleção Brasileira de Futebol, hoje é mais fácil encontrar quem saiba escalar cinco ministros do STF.
Entretanto, grande parte da população — e mesmo dos formadores de opinião — não possui o conhecimento técnico necessário para interpretar adequadamente as decisões judiciais e o funcionamento institucional do Judiciário. Isso favorece distorções, interpretações equivocadas e a propagação de informações incorretas ou simplificadas sobre temas complexos. Some-se a isso os ataques frequentemente estimulados por atores políticos com interesses próprios em desacreditar decisões judiciais, uma estratégia que enfraquece o respeito às instituições democráticas e inibe críticas construtivas, pois o ambiente se torna hostil ao contraditório.
Paradoxalmente, em tempos de crescimento exponencial dos meios de comunicação e disseminação de conteúdo, faltam espaços públicos e fóruns que promovam o diálogo qualificado entre especialistas, sociedade civil e cidadãos. O debate, muitas vezes, ocorre em ambientes superficiais, sem mediação ou espaço para aprofundamento, o que contribui para a reprodução de clichês e preconceitos. Além disso, a disseminação de notícias falsas e conteúdos desinformativos “sujam a água” e potencializam a circulação de boatos e narrativas enviesadas, tornando difícil separar fatos de opiniões ou críticas legítimas de ataques infundados.
Por fim, a explosão da judicialização de conflitos após a Constituição de 1988 também atingiu o ambiente político, levando ao crivo do Poder Judiciário questões antes eminentemente circunscritas ao universo parlamentar. Muitas dessas demandas não se limitam ao viés técnico — como a análise de inconstitucionalidades ou irregularidades administrativas —, mas envolvem pertinência de políticas públicas, excessos de protagonismo, criminalização de atuações políticas ou, inversamente, a politização de condutas criminais. Isso robustecem tensões e controvérsias quanto aos limites entre os poderes, que antes se restringiam a manifestações protocolares ou disputas episódicas de protagonismo.
Hoje, a tônica passou a ser a ameaça direta — sem subterfúgios — a integrantes do Poder Judiciário ou a seus familiares, feita ao vivo ou por escrito, por parlamentares e simpatizantes, com registros de datas e imagens. As manifestações mais extremadas configuram condutas criminosas que alguns tentam justificar por uma deturpada concepção de liberdade de expressão, enquanto outros as veem como parte do exercício de mandato, amparadas por prerrogativas que jamais tiveram esse alcance ou razão de ser.
Não bastassem essas deturpações, que por si só degradam o ambiente interinstitucional, elas são amplificadas nas redes, por seus próprios autores ou seguidores, recebendo elogios e apoios de quem desconhece o conteúdo daquilo que propaga — e, pior, os limites entre a manifestação de inconformismo e atos delinquenciais tipificados no ordenamento jurídico. Se a mera sobreposição de papéis já dificulta o debate sadio, o que dizer da subversão do conceito de autoridade, estimulada para diminuir a legitimidade daqueles a quem compete aplicar a lei, solucionar conflitos de interesse e preservar as instituições nacionais, independentemente de opiniões contrárias, ainda que estas sejam aplaudidas por grande parte da população?
Apesar dos avanços, ainda há limitações na comunicação do Poder Judiciário com a população. Decisões complexas — seja pelo conteúdo técnico, seja pela distância temporal em relação aos fatos que as originaram — são, muitas vezes, divulgadas sem explicações acessíveis à maioria, o que dificulta a compreensão e alimenta desconfianças, abrindo espaço para interpretações enviesadas. Soma-se a isso a percepção, enraizada culturalmente no país, de que levar questões ao “tapetão” — como se diz no futebol — pode reverter resultados, apagar penalidades ou transformar vilões em heróis, sem considerar a crise sistêmica que esse comportamento provoca.
Superar esses desafios exige o fortalecimento da educação cívica e jurídica, o incentivo ao diálogo plural e respeitoso, o combate sistemático à desinformação e o aprimoramento da comunicação institucional do Judiciário. Só assim será possível construir um debate verdadeiramente sadio. Afinal, ao contrário do que ocorre nos campeonatos anuais, em que um time rebaixado pode retornar algum tempo depois e proporcionar alegria a seus torcedores, se qualquer dos Poderes — pilares centrais do Estado Democrático de Direito — decair à divisão subalterna, toda a estrutura fundamental se desmantela, cobrando da sociedade um preço quase sempre impagável.
*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV
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