Gustavo Varella – “Contribuições para o debate – achismos, rancores e miséria intelectual”

Já há muito — desde que processos e outros temas jurídicos de repercussão ganharam espaço nos debates populares — lemos e ouvimos comentários absolutamente impróprios e insustentáveis (do ponto de vista da ciência jurídica) feitos em debates e discussões, a maior parte delas travadas por pessoas despidas de conhecimentos básicos sobre os temas tratados. Ainda que isso seja visto como normal (e até tolerado, a pretexto de garantir a liberdade de opinião do cidadão), muitas vezes esses assuntos (e seus reflexos) tomam rumos perigosos, a depender da situação e dos personagens envolvidos.

A prudência manda que identifiquemos, sempre, as circunstâncias e ambientes nos quais expressamos nossas opiniões, os possíveis efeitos delas e, acima de tudo, o que de útil podemos colher (ou produzir) para as nossas vidas e para a comunidade, já que existimos em sociedade e nossa evolução está ligada ao todo.

Fazendo um paralelo bem ordinário com tema mais ameno (ainda que igualmente apaixonante), um torcedor de futebol pode pensar e falar o que quiser sobre seu time e o adversário, mas é razoável que o faça num local que garanta alguma segurança quando suas expressões e falas fugirem do natural exagero “clubista”, descambando para ofensas pessoais. Dizer que o time tal tem uma torcida integrada apenas por delinquentes e outros impropérios e atributos ofensivos pode render ao apaixonado torcedor apenas respostas igualmente ofensivas quando a resenha se dá entre amigos, numa mesa de bar. Porém, podem-lhe custar a vida se feitas no meio da arquibancada adversária, num jogo de final de campeonato.

Num patamar maior (mas continuando nesse exemplo), caso essa discussão se dê num programa desses de “comentários”, povoado de especialistas de todas as ordens e origens, e caso um desses comentaristas decida usar seu espaço de fala apenas para ofender e expressar seu ódio, sem atentar para questões que impõem um mínimo de conhecimento ou de informações verazes, terá sua credibilidade afetada — às vezes irremediavelmente. Não será novamente convidado a participar (ou será demitido pelo dono do programa) ou, caso esteja ele utilizando-se do próprio canal de comunicação, reduzirá sua audiência aos chamados “convertidos”, pessoas que pensam igual ou que têm idêntica paixão ou ímpeto.

Quando a gente “retorna” para o “campo” do direito, essas práticas e situações impõem um cuidado ainda maior, visto que as consequências de uma opinião virulenta, de um assaque moral ou da subversão de conceitos feita a propósito de defender uma opinião apaixonada, porém despida de fundamentos, podem comprometer todo um sistema, arruinando vidas e vulnerando instituições.

Debates acalorados são próprios das sociedades humanas, visto que não se concebe como razoável imaginar-se uma “treta” numa colmeia ou num rebanho sobre a melhor flor ou o capim mais gostoso. Porém, mesmo nessas refregas cotidianas há de se observar limites ao menos entre fatos e suposições, já que os primeiros até podem ser interpretados de maneira distinta conforme a ótica de cada um, mas as segundas, essas surgem de impressões subjetivas, de comentários alheios igualmente fruto de convicções pessoais de seus protagonistas ou, pior, de notícias falsas habilmente criadas e difundidas para confundir e aumentar o “calor” do problema, não para explicá-lo e resolvê-lo.

Não raramente nos deparamos com brigas e discussões envolvendo notícias associadas a pessoas notórias vinculadas a processos de grande repercussão. Um processo judicial, tenha ele como objeto a singela cobrança de um boleto não pago ou um crime grave, deve observar um sem-número de comandos legais, fases, expedientes e mecanismos próprios desde seu surgimento até que se alcance uma decisão final e irrecorrível.

Esses elementos, digamos, “litúrgicos”, são concebidos para permitir o desenvolvimento da causa até que alguém investido do poder de decidi-la possa formular, com segurança e autoridade, a solução adequada para o litígio que, repita-se, pode ter como essência o crédito de alguém que vendeu algo e não recebeu, ou a segurança de uma comunidade violentada pelo assassinato de um de seus integrantes.

Vivemos tempos singulares, registro, nos quais, muitas vezes, “likes” e postagens de apoio feitas em favor das mais insanas e delinquentes afirmações valem mais do que a verdade ou a justiça na solução de controvérsias. Decisões judiciais e, mesmo, a pura expressão literal de uma regra impositiva são cada vez mais tratadas como resultado de esquemas ou projetos criminosos de alguns inapelavelmente rotulados de bandidos, ou como fruto de combinações espúrias visando algum tipo de recompensa ou gozo desses, em detrimento de outros já “canonizados” no imaginário de seus simpatizantes.

É evidente que homens e mulheres que integram uma instituição humana — o Judiciário (e aqui agrego a esse universo juízes, advogados, promotores, policiais, serventuários etc.) — são todos passíveis de cometer erros ou de praticar atos às vezes criminosos, impondo-se o conserto daqueles e a apuração e punição dos responsáveis por esses. Mas é intolerável (além de inservível, indigno e até estúpido) que manifestações judiciais, independentemente da instância ocupada pelo processo, da identidade de seu responsável, da qualidade ou da condição das partes ou, por fim, do assunto tratado nos autos, sejam tratadas como o são episódios havidos em partidas de futebol, conversas de botequim ou brigas de comadres, quando preponderam os achismos, raivas e amores sobre rigores científicos, provas, documentos e regras positivadas.

Mais que isso: raia à desonestidade intelectual profissionais versados na ciência do direito — ainda que não cotidianos aplicadores ou operadores — verterem todo tipo de aleivosias, opiniões sabidamente imprestáveis ou conceitos tortos e inapropriados, para sustentar motivações reprováveis ou ilícitas de seus prolatores porque, pela ótica de quem assim procede, pouco importa como se alcança o resultado pretendido, mesmo pisado sobre pescoços alheios ou enlameando imagens e carreiras.

Como acima citado, esses que assim agem, mais hora, menos hora, acabam como aqueles comentaristas que se alimentam do ódio na exata medida de sua mediocridade e de suas frustrações: não contribuem com absolutamente nada, não produzem nada de útil, não ajudam a consertar ou concertar problemas. Desacreditados, desrespeitados, legados a um “depósito existencial” e, na melhor das hipóteses, rotulados na testa como caricatos, desequilibrados, vazios e ignorantes.

Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

*A opinião do articulista é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a posição do portal News Espírito Santo

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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