Gustavo Varella – “Contribuições para o debate: autoridade x autoritarismo”

Na linha proposta desde o início dessa fase de textos, volto-me à dissecação de duas palavras que têm a mesma origem etimológica, mas enorme diferença semântica entre si, mesmo a segunda “derivada” da primeira.

O termo “autoridade” originou-se do latino auctoritas, que, naqueles tempos, referia-se ao prestígio, à influência e à capacidade que desfrutava uma pessoa no seu meio social, conferindo a ela o direito de ser obedecida e respeitada. Modernamente, expressa o poder, legítimo e socialmente aceito, de dar ordens e exigir sua obediência. Relevantíssimo repetir “legítimo e socialmente aceito”, porque, em sociedades modernas, nas quais há respeito pelo Estado Democrático de Direito, o uso dos instrumentos de poder é regulado e limitado pelas leis vigentes, que devem ser respeitadas tanto por quem está investido da autoridade para fazê-lo quanto pelos seus destinatários.

Assim, partindo das premissas de que o funcionamento e o equilíbrio das instituições públicas e privadas que integram essa sociedade decorrem da supremacia do interesse coletivo sobre o individual, e de que o agente público não pode fazer absolutamente nada que não esteja previsto em lei (devendo agir em estreita sintonia com aquilo que ela prescreve), chega-se à conclusão de que, quando age cumprindo suas prescrições ou ordens com fundamento nelas, não há que se questionar sua autoridade, cabendo aos destinatários, acaso julguem-nas (as leis, os atos em si ou seus efeitos) injustas ou malfeitas, das mesmas recorrer ou modificá-las usando os mecanismos próprios, sejam os recursais ou editando novos comandos que as substituam.

No entanto, quando o agente público, qualquer que seja seu posto, cargo ou função dentro daquela sociedade, atropela ou despreza as regras e os limites estabelecidos pelas leis em vigor, impondo sua vontade própria ou do grupo que representa, está-se diante do autoritarismo.

Em suma, se imposição de autoridade não significa autoritarismo, esse se dá quando o agir decorre de atropelo ou da exacerbação de alguém investido de poder e autoridade, daquilo que se estabeleceu justamente para conferir legitimidade e garantir equilíbrio ao cotidiano das instituições e à vida em sociedade.

Dois singelos exemplos: um pai (ou uma mãe), que exerce a liderança de sua unidade familiar, tem como função primordial reger sua “pequena orquestra”, mesclando valores morais e sociais razoavelmente aceitos na comunidade que integra com as normas de convivência que alcançam sua família (regras escolares, do condomínio, leis civis municipais, estaduais e federais etc.), não lhe sendo dado o direito de querer impor seus conceitos pessoais e agires a outros além de seus familiares e, ainda assim, observados determinados princípios humanísticos;

Um juiz, que julga um caso de grande repercussão envolvendo um crime grave, deve garantir ao odiado réu os mesmos instrumentos de defesa que existem para outro socialmente adorado e, apurada a inocência de ambos, absolvê-los ou, porventura demonstrada sua culpa, condená-los aplicando aos mesmos, com as peculiaridades de cada caso, as sanções estabelecidas, não lhe sendo permitido agravá-las para um ou abrandá-las para outro de acordo com as suas convicções ou conveniências.

Mesmo em sociedades modernas e já avançadas em termos de cidadania, não é incomum encontrarmos quem proteste contra rigores ou abrandamentos vistos em julgamentos ou ações que tenham atingido pessoas antecipadamente absolvidas ou condenadas por seus apoiadores ou adversários, porque, inobstante o avanço cultural, econômico ou civilizatório que desfrutam, todos os seres humanos têm seus próprios “tribunais de consciência”, e torcer apaixonadamente pelas suas crenças e mitos é direito de cada um.

Além disso, o conceito de injustiça é largo, individual e subjetivo, dificilmente se podendo esperar de uma vítima de um crime hediondo a percepção de que a pena aplicada ao infrator, por mais grave que tenha sido, foi justa e suficiente para reparar o mal por ele cometido.

Outro fator que contribui sobremaneira para confundir-se ato de autoridade com autoritarismo é a impunidade, que tem sua raiz bifurcada em dois segmentos igualmente degradantes.

O primeiro deles decorre da percepção de que ninguém é punido por nada, fruto da leniência do Estado, da falta de aparato, da corrupção e outros males que nos assolam enquanto cidadãos ordeiros, criando a falsa impressão de que qualquer ação tomada para corrigir essa triste realidade é tão-somente uma opção cosmética escolhida e endereçada a um ou outro alvo para disfarçar a falência do sistema.

O segundo é cultural, e muito pior: pessoas alimentadas, às vezes desde a tenra infância, pela ideia de que, nascidas ou soerguidas em vida a uma condição econômica privilegiada, os rigores da lei não se lhes alcançam ou, pelo menos, não com os mesmos impactos, formas e consequências que atingem seus concidadãos menos aquinhoados.

Para os que se entendem dignatários desses privilégios, um jovem pobre que furta um veículo para curtir a noite com seus amigos é um marginal que deve ser preso (de preferência algemado e metido no cofre de uma viatura), condenado e depositado numa penitenciária por muitos anos, ao passo que um outro, que comete o mesmo ato mas é filho de família rica, estudou em colégios caros, fala duas línguas e passa suas férias na Disney, esse é apenas um desajustado, que deve ser encaminhado a um psicólogo e ter sua mesada cortada por um mês.

Na Idade Média, uma criança era considerada um “pequeno adulto”, que com o passar dos anos cresceria fisicamente e teria capacidade de distinguir entre o certo e o errado. Ainda que os estudos da formação da personalidade humana, seus valores e princípios tenham evoluído bastante daqueles tempos para os atuais, exemplos vivenciados enquanto crianças afetam suas percepções de realidade quando atingem a maioridade física.

Como não evoluíram sua compreensão de autoridade e continuam na crença de que o justo e o certo são o que apreenderam com seus pais e conviventes, toda vez que têm sua responsabilidade apontada ou cobrada em razão de algum ato ou manifestação sua que tenha gerado prejuízo a alguém, reagem, primeiro buscando desautorizar quem lhes confronta — alguns chegando ao extremo da eliminação física —, depois convocando a reação de quantos mais comunguem de sua falsa perspectiva, convencendo-os de que serão os próximos alvos e, por fim, malsucedidos nos dois movimentos anteriores, retroagem ao vitimismo infantil, desatam a chorar em busca da comiseração de alguém que lhes proteja das consequências ou das reprimendas pelos seus malfeitos.

Autoridade, para eles, é quem, investido de poder, pratica, apoia ou garante tudo o que concebem como direito seu. Autoritário, em trato inverso, é quem, também investido de poder, contesta, enfrenta, impede ou lhes cobra pelas consequências de seus atos.

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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