Como acentuado no texto “Prólogo” que publiquei na semana passada, a intenção é trazer ao campo das discussões informações que contribuam para a construção (ou restauração) de um debate digno, equilibrado e proativo, no sentido da evolução de todos nós e da sociedade. Pequenos excertos de fatos históricos, alguma matéria jurídica e outros dados que julgo, modestamente, relevantes à reflexão necessária a todos nós — mais ainda àqueles que, como eu, preocupam-se em apreender e compreender (o que não significa aceitar), mais do que vencer disputas ideológicas ou afins.
Ressalto — promessa que me fiz — que a proposta inclui o esforço de não deixar prevalecerem impressões fruto de convicções e experiências pessoais, que se infiltram e contaminam o ambiente. Além disso, também os compromissos de evitar o chamado “juridiquês” e de atentar para a célebre lição de Winston Churchill: “Das palavras, as mais simples e diretas”.
Dentre os temas mais inflamados desses últimos dois séculos está a disputa retórica entre os que se dizem “de direita” ou “de esquerda”. Ao longo dos tempos, opiniões pessoais, visões distintas da realidade e elementos religiosos, econômicos, étnicos e afins foram se sobrepondo nessas pelejas, quase sempre levando a altercações estéreis, acentuando rixas, provocando tragédias e afastando as pessoas — sem qualquer ganho civilizatório — e impedindo que valores e ideias relevantes, nutridos por ambos os lados em confronto, fossem avaliados, considerados, aperfeiçoados e aplicados. E, pior que isso, acrescento, fugindo completamente das essências histórica e semântica desses conceitos, depredando as oportunidades de evolução.
Vamos lá. No final do século XVIII, na França, ocorreu um movimento conhecido como Revolução Francesa. Antes que as coisas piorassem ao ponto de custarem as cabeças guilhotinadas de mais de quinze mil pessoas, resolveu-se instalar o que ficou conhecido como Assembleia Nacional. Esse parlamento incluía representantes dos chamados “Três Estados” que compunham a sociedade francesa da época: o Primeiro, composto pelo clero; o Segundo, pela nobreza; e o Terceiro, que incluía os chamados burgueses (comerciantes, proprietários de terras e outros cidadãos economicamente abastados) e o povo comum (trabalhadores e camponeses).
Evidente que os integrantes do “Terceiro Estado” (burguesia + povo) contavam-se em número maior, porém não gozavam da importância nem da influência dos demais. Além disso, as decisões daquele parlamento eram tomadas por voto de grupo, cada um dos três com “peso um”, o que fazia preponderar os interesses comuns (e somados) dos dois menores, porém mais poderosos, sobre aqueles defendidos pelo grupo mais numeroso, todavia menos relevante.
Outro ponto relevante para a compreensão do contexto é que, mesmo composto por representantes ditos “do povo” (à época, todos os que não vinham da nobreza ou do clero), o Terceiro Estado abrigava uma diferença brutal entre a burguesia e os economicamente desfavorecidos — a mesma que hoje se observa entre o dono de uma fazenda e seu empregado, ou entre um banqueiro e o caixa de uma de suas agências.
Como ocorre em todo universo humano multitudinário, depois de algum tempo de convívio, seus integrantes começam a se aglutinar em pequenos grupos, formados por aqueles mais parecidos entre si por diversos aspectos. E vários desses segmentos começam a desenvolver pautas específicas, algumas bastante diferentes das defendidas por outros originalmente análogos. Tome-se como exemplo o futebol: a massa torce em uníssono pela sua seleção nacional, contudo se fragmenta nos estádios quando disputam dois times da mesma cidade.
Não foi diferente na Assembleia Nacional Francesa. Os representantes do “Estado do Povo” dividiram-se, inicialmente, em dois grupos. Um desses grupos, composto por deputados representantes da chamada alta burguesia (grandes latifundiários e comerciantes prósperos), recebeu o apelido de “Girondinos”, alusivo à região rica da Gironda, e defendia a manutenção da monarquia e seus privilégios, bem como bandeiras como o direito à propriedade privada, a economia de mercado e a meritocracia.
O outro grupo, chamado “Jacobino” (alusão ao Convento de Saint-Jacques, em Paris, onde se reuniam), reunia pequenos comerciantes, artesãos, professores, gente do povo, enfim, e defendia a deposição da monarquia e de seus privilégios, iguais oportunidades, melhor distribuição de renda, entre outras bandeiras.
Na distribuição das cadeiras do parlamento, os representantes da nobreza e do clero sentavam-se diante da mesa da presidência dos trabalhos. E, sabe-se lá por qual razão (eu, pelo menos, nunca soube), os Girondinos tomaram os assentos à direita, e os Jacobinos, à esquerda. A mera localização dos assentos na Assembleia — que poderia ter sido invertida — não significaria absolutamente nada na história ou na política, não fosse a radicalização dos discursos desses dois setores inicialmente análogos, quando comparados à origem e aos interesses dos membros dos grupos privilegiados, que se ocupavam exclusivamente de suas posses e posições.
Porém, os Girondinos — interessados na manutenção do status quo que os privilegiava enquanto representantes da alta burguesia — passaram a negociar seu apoio às propostas do clero e da nobreza em troca de favores, indicações e proteção aos seus negócios. Por isso, começaram a ser conhecidos como “o pessoal da direita”. Já os Jacobinos, cada vez mais oprimidos em suas já pequenas perspectivas e condições econômicas, radicalizaram suas bandeiras, ao ponto de, anos depois, muito mais numerosos, tomarem o controle das coisas e enviarem mais de quinze mil concidadãos à guilhotina. Eles passaram a ser tratados como “aquele povo da esquerda”.
Eis aí a origem dos rótulos “de direita” e “de esquerda”.
No curso dos dois séculos que separam a Assembleia Nacional Francesa dos dias atuais, outros fatos e valores, frutos de movimentos religiosos, econômicos e filosóficos, foram sendo distribuídos entre esses dois “conceitos políticos antagônicos”. A exemplo do que fazemos quando arrumamos duas gavetas de um armário: numa colocamos apenas camisas brancas; na outra, as coloridas.
Interessante é lembrar que, como se viu na formação do chamado “Terceiro Estado” francês — que agregava 95% da população não pertencente às castas privilegiadas — essas “camisas” possuem o mesmo formato e tecido, variando entre si em cor, detalhe ou condição de uso, mas continuam impressionantemente distintas dos mantos e batinas cravejadas com fios de ouro ostentados pelos inalcançáveis privilegiados.
Por fim, impressiona-me ouvir, ainda hoje, pessoas que integram esses mesmos 95% da sociedade — seja no Brasil, seja no mundo — defenderem privilégios que não possuíam naqueles tempos, continuam não tendo e jamais terão. Adotam e ecoam discursos de quem os considera piores por serem “malnascidos” ou “mal providos”, gastando tempo, energia e, por vezes, arriscando suas vidas e liberdades em conflitos que só aproveitam aos que, de longe, seguros e cada vez mais opulentos, se divertem assistindo à desgraça de gente ignorante duelando por conceitos derivados… apenas da posição das cadeiras num plenário europeu do século XVIII.
*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV
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