Gustavo Varella – “Contribuições para o debate – o que é prerrogativa”

Rogar tem origem no verbo rogare, e significa suplicar, implorar, pedir com insistência.

Como aos seres humanos quase nunca basta verem-se análogos num mesmo direito ou condição, a adição ao verbo em questão do prefixo “pré” serviu, nesse caso, para distinguir, qualificando-as de todo o resto por várias razões, aquelas pessoas às quais são concedidas as primazias de pedirem antes, entrarem antes, sentarem-se nas melhores cadeiras, dentre outras.

Se nos tempos antigos essas preferências serviam “quase apenas” para rotular e diferenciar quem mandava daqueles aos quais só cabia obedecer, nas sociedades modernas essas prerrogativas são, “quase sempre”, instrumento ou condição reconhecidas a determinadas classes ou pessoas que desempenham funções especiais, que são responsáveis por tarefas mais complexas ou que as estão cumprindo (ou são capacitadas a fazê-lo) em nome de alguém ou de um grupo maior.

A um advogado, por exemplo, bacharel no curso de Direito e inscrito na OAB, são conferidas algumas prerrogativas para o exercício de seu sacerdócio profissional, que não são, como pensam muitos, vantagens ou regalias pessoais, mas garantias necessárias à representação daqueles que lhes confiaram um mandato, pessoas em nada ou menos capacidades de proverem por si próprias as defesas de seus interesses.

Dirigir-se em nome do representado às autoridades constituídas, assinar em seu nome documentos tradutores de vontades e de obrigações, ingressar em locais de frequência restrita, debater, divergir e recorrer de decisões e ordens e, em determinadas situações, denunciar abusos e ilegalidades, exigir respeito para consigo e para com seu representado e buscar socorro em instâncias superiores não são superpoderes ostentados por um advogado, mas ferramentas que devem ser utilizadas exclusivamente no cumprimento do propósito que justificou sua outorga, visto que todas as vezes em que mecanismos e condições especiais são abusados ou desvirtuados de suas essências ou limites, dois efeitos, igualmente deletérios, ocorrem: a sua banalização e a piora da situação que se buscava resolver antes do desequilíbrio.

Quando essa extrapolação se verifica no exercício de um mandato político, isso se revela ainda mais grave do que num universo restrito à defesa dos interesses de um só cliente, visto que a representação política pressupõe sua obtenção através da soma dos votos unitários de milhares, às vezes milhões de eleitores, fomentando a falsa noção de que é próprio da atividade parlamentar agredir adversários, violar impunemente as leis, atacar instituições, fazer e dizer o que se quer ou o que pensa sem consequências.

Ao contrário do que muita gente erradamente entende (e que muitos erradamente afirmam), imunidades penais e civis decorrentes da chamada inviolabilidade de voz e voto servem apenas e tão somente como garantias ao exercício livre dessas representações políticas, mas não abrangem ofensas e outros atos ilícitos praticados contra a imagem e a intimidade de quem quer que seja, independentemente do fato de que quem os cometeu foi um singelo vereador de um pequeno município ou um senador da República: a única diferença entre eles, em casos tais, é o foro por onde tramitará a ação que deverão responder.

Assim, tornando ao exemplo acima, se as prerrogativas conferidas a um advogado não dão a ele o direito de desrespeitar regras (inclusive as de urbanidade) nem desacatar nenhuma autoridade, também não pode um parlamentar fazê-lo, na equivocada concepção de que está abrigado pelo mandato.

Vale sublinhar, ainda, a diferença enorme que existe entre subir à tribuna e discursar, escrever ou mesmo manifestar publicamente, até com veemência, suas ideias, valores e conceitos acerca de propostas, fatos sociais ou políticas públicas em discussão, e assacar contra a honra de alguém, investido ou não de semelhante mandato, imputando-lhe a autoria de atos ilícitos ou indignidades dos quais apenas desconfia terem ocorrido por tratar-se de um desafeto seu ou de seu grupo, um adversário ideológico ou para fazer-se parecer ao eleitor como alguém destemido e bem informado.

Tampouco é dado ao parlamentar o direito de imiscuir-se no funcionamento de órgãos públicos, atalhar processos e procedimentos neles em tramitação, arrostar regras postas ou aqueles incumbidos de seu cumprimento ao argumento de que representa milhares de cidadãos que o elegeram, eis que essa representação, legítima e legalmente constituída, exige rigorosa observância aos limites e atributos traçados e conferidos pelas leis e pela Constituição Federal.

Pessoas ignorantes e crianças, as primeiras porque despidas de informações ou preguiçosas em refletir sobre elas, as outras porque ainda carentes de experiência, submetem-se facilmente aos abusos, vontades e caprichos dos que gritam e esperneiam na perspectiva de que exibições de força, por si só, bastam para conferir-lhes autoridade ou relevância, mas a qualquer um dotado de mínima capacidade cognitiva, cônscio de seu papel na sociedade e que não tolera rompantes de fanfarrões desrespeitando a sua inteligência, esse tipo de conduta revela apenas falta de educação e incapacidade de convencerem seus interlocutores da lógica ou da pertinência de seus argumentos.

Prerrogativa, longe de representar licença para delinquir em nome próprio ou de algum representado, é uma espécie de escudo que protege seu detentor de abusos de poder ou ilegalidades praticadas exatamente para impedir ou dificultar o exercício pleno das missões e funções que decorrem de um mandato de representação, seja ela judicial, empresarial ou política.

Como já salientado, a quantidade de votos recebidos por um parlamentar, sua projeção ou a imponência de seu cargo no cenário nacional não são fatores que abrandam ou evitam o alcance das leis penais sobre suas condutas e os efeitos delas, quando ilícitas e deletérias ao bem comum.

Todos nós somos suficientemente experientes para saber que xingamentos e agressões são recursos típicos daqueles(as) aos quais faltam argumentos, fundamentos ou certeza para sustentarem seus pontos de vista, discursos e retórica. Cansamos de presenciar (ou participar de) discussões, mesmo em sede familiar, nas quais alguns de seus protagonistas, quando percebem-se já desacreditados ou em vias de sê-lo, partem para impropérios ou atos de violência que nada mais são senão o sofrido reconhecimento antecipado da derrota argumentativa, a sentida incapacidade de convencimento, colando na testa do seu autor indelével rótulo de estupidez e acrescendo maior contaminação ao ambiente.

No calor do embate, principalmente quando diante de plateias, algumas pessoas desbordam dos limites e regras da boa convivência, tentando, desesperadamente, manter suas posições e imagens, mas acabam pregando em suas próprias testas rótulos de incapacidade e grosseria, que nem mesmo a miopia da paixão consegue esconder por muito tempo.

*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

*A opinião do articulista é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a posição do portal News Espírito Santo

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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