Gustavo Varella | “Contribuições para o debate – Para que serve a anistia”

A palavra é uma unidade básica da linguagem e pode ser classificada em diferentes categorias gramaticais, como substantivos, verbos, adjetivos, entre outras. Elas são usadas para formar frases e expressar ideias, sentimentos, ações e objetos.

Sem considerar critérios distintivos que levam em conta os dialetos, existem hoje aproximadamente sete mil línguas conhecidas no mundo, cada uma delas contendo entre duzentas mil e um milhão de palavras, incluindo termos técnicos e científicos.

Como o propósito de uma palavra é servir como unidade de linguagem que transmite significado, alguém que não possua conhecimento ou capacidade de expressar, pronunciar ou escrevê-las corretamente é geralmente chamado de “obscuro” ou “ininteligível”, já que os sons que produz — ou os sinais que desenha — não permitem ao interlocutor ou leitor compreender o que foi comunicado.

Em alguns casos, todavia, quando a intenção é confundir e não esclarecer, certas palavras são empregadas de maneira propositalmente errada, misturadas a outras como se fossem sinônimos, conjugadas em tempos incorretos, mutiladas ou invertidas em seus sentidos. O resultado é aquilo que Caetano Veloso sugeriu na letra de Sampa para descrever as contradições de São Paulo: “o avesso, do avesso, do avesso”. É o que se vem observando, nos últimos tempos, com relação à palavra “anistia”.

A Constituição Federal de 1988 prevê três tipos de “perdão” para pessoas acusadas, julgadas ou condenadas por crimes no Brasil. O mais comum é o perdão judicial, cujas hipóteses são estabelecidas em lei — não ficam, portanto, à mercê da vontade do juiz. É individual e possível em situações em que as consequências do crime atingem o próprio agente de forma tão grave que a pena se torna desnecessária, como em um homicídio culposo cometido por uma mãe contra seu filho.

O indulto, segunda forma de perdão, é atribuição exclusiva do Presidente da República, concedido por meio de decreto. É coletivo, não se aplica a uma pessoa específica, extingue a pena, mas não apaga o crime, e os beneficiados não retornam à condição de primários.

Por fim, a anistia é a mais abrangente das hipóteses de indulgência. Cabe ao Congresso Nacional e possui características relevantes: é coletiva, ampla e extingue a punibilidade, apagando completamente o crime e seus efeitos — de modo que o ato, para fins legais, é considerado inexistente. A anistia é um instrumento excepcional, aplicável em contextos de transição política conturbada ou de grande tensão social. No Brasil, porém, não abrange crimes contra a ordem democrática, que são imprescritíveis e não podem ser perdoados.

Como previsto na Constituição, cabe ao Supremo Tribunal Federal a guarda e interpretação final da Carta Magna. Assim, não se pode sequer cogitar que o Congresso aprove uma emenda constitucional alterando o texto original ou afrontando cláusulas pétreas para conceder anistia a condenados por crimes contra a democracia. Isso configuraria uma afronta direta ao princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2º da Constituição.

Além disso, salvo por insanidade, cretinice ou ignorância, não se pode conceber a ideia de conceder anistia a quem tenha atentado contra a própria democracia, contra as instituições que formam o Estado Democrático de Direito e contra a Constituição. Embora seja legítimo o debate público sobre o tema — e respeitadas as opiniões contrárias, desde que técnica e logicamente fundamentadas —, defender anistia para envolvidos em atos criminosos voltados à destruição das instituições nacionais ou à negação de resultados eleitorais legítimos é uma violência intolerável contra a ordem democrática.

A democracia é um direito fundamental e deve ser protegida de toda agressão movida por interesses pessoais em detrimento do interesse coletivo. É fácil compreender que o direito à vida deve prevalecer sobre o desejo de vingança de quem queira eliminar um desafeto. Mas, para muitos, é mais difícil perceber que direitos fundamentais como o sigilo do voto, a autodeterminação e a estabilidade democrática também podem ser destruídos — não por armas, mas por palavras deturpadas e discursos manipulados.

Esses discursos, travestidos de “liberdade de expressão”, são usados por pessoas ou grupos que exacerbam temores, distorcem conceitos e manipulam valores para se apresentarem como mensageiros de uma “verdade maior”, protetores de uma liberdade que, na prática, buscam restringir.

Se já é difícil convencer alguém desinformado de que suas impressões não condizem com a realidade, mais desafiador é quando tais concepções são defendidas por pessoas instruídas, formadas, experientes. Essas, paradoxalmente, tornam-se as maiores vítimas da deturpação de palavras e sentidos, pois a vaidade as impede de reconhecer que foram enganadas — e acabam servindo de eco a discursos hábeis e perigosos. São como torcedores fanáticos que, mesmo diante de imagens mostrando a irregularidade do gol de seu time, preferem atribuir a derrota à corrupção do juiz ou à manipulação do sistema.

Interpretar incorretamente palavras é algo humano — nenhum indivíduo domina mais de dez por cento de seu próprio idioma. No entanto, insistir no erro diante de informações claras e corretas é fruto de teimosia e de estupidez alimentada pelo orgulho.

Anistia não é, não tem e nem significa o que se anda espalhando por aí ultimamente. Quando examinada sob os prismas científicos do Direito, da Filosofia e da Etimologia, a palavra carrega um sentido técnico e histórico que não pode ser distorcido para justificar a impunidade ou o perdão de quem atenta contra a democracia.

*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV

*A opinião do articulista é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a posição do portal News Espírito Santo

sobre nós

Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

compromisso e propósito

O NewsEspíritoSanto nasceu com compromisso de levar informação precisa, relevante e independente para os capixabas. Nosso propósito é ser uma fonte confiável para quem busca entender os acontecimentos do Estado, valorizando a transparência, a ética e a pluralidade.

contato

E-mail:

contato@newsespiritosanto.com.br

WhatsApp:

27 999204119

Participe do conteúdo do News ES: encaminhe a sua sugestão de pauta para o nosso e-mail.