Dois nomes femininos. O que poderia existir de comum entre eles além do gênero? Aparentemente, nada. Porém, nomes — palavras que sejam — guardam significâncias, pertinências que nos levam a associá-los a fatos, outras pessoas e momentos significativos às nossas histórias pessoais.
Com datas isso igualmente ocorre. O dia 11 de setembro era, até 2001, um dia como qualquer outro. Ocorre que, quando os terroristas da Al-Qaeda jogaram seus aviões contra prédios nos EUA, a data passou a ter uma dimensão mundial, extrafronteiras americanas. Essa mesma data, no Brasil, significava pouco — até que, neste ano, ocorreu um julgamento no STF e, cada um inferindo do resultado o que lhe convier, para muitos passou à história como um dia de redenção cidadã; para outros, sinônimo de injustiça.
Lídice, numa singela busca na internet, nos traz vários verbetes. Além de nome de mulher e de uma cidade do Rio de Janeiro, remonta a um pequeno vilarejo na hoje República Tcheca, que, em 10 de junho de 1942, foi massacrado: seus pouco mais de 500 habitantes foram assassinados, suas casas explodidas e seu solo, depois disso, aplainado com tratores pelos nazistas. A justificativa era que um dos ali nascidos teria participado do assassinato de Reinhard Heydrich, governador nomeado por Hitler para impor seu regime de terror naquele pedaço da Europa. Resolveram, então, tatuar o exemplo do que ocorreria com quem ousasse desafiá-los.
Uma espécie de “menina dos olhos” do ditador alemão, Heydrich tinha 38 anos por ocasião de sua morte, e era considerado símbolo de eficiência, inteligência e crueldade — exemplo público de dedicação e lealdade canina à causa nazista.
Selma, por seu turno, significa “protegida por Deus”, em sua origem germânica, ou “lugar de vista agradável”, do árabe. Além de batizar incontáveis mulheres, também dá nome a uma cidade localizada no Estado americano do Alabama, de onde, em 1965, partiu uma marcha de pessoas lideradas por Martin Luther King, protestando contra a segregação racial naquele país, pela igualdade e pelo direito ao voto — já que negros americanos não podiam votar naqueles tempos. A manifestação provocou reações violentas daqueles que os consideravam, os negros, gente de quinta categoria.
Há poucos anos, o nome “Selma” voltou a ocupar espaço nas discussões, usado como codinome de um evento para o qual milhares de brasileiros, em grupos hospedados nas redes sociais, foram convidados: a “Festa da Selma”. Não obstante alguns defenderem-no como mera coincidência, uma reação extremista aos protestos civis ocorridos nos EUA, e outros, menos criativos, como uma homenagem à esposa de um de seus mais estrelados apoiadores, o fato é que, em 8 de janeiro de 2023, uma turba numerosa invadiu as sedes dos Três Poderes da República, munidos de faixas uníssonas — daquelas que não se produzem durante poucos quilômetros de caminhada —, em sincronicidade elogiável até para tropas regulares.
Destruíram tudo à sua frente, vilipendiaram recintos públicos, pregaram a prisão de seus contrários, a eliminação de autoridades, agrediram policiais e pediram intervenção militar — tudo, claro, em nome de Deus e da democracia. Um exemplo do que a degradação moral, a ignorância e a violência, quando amalgamadas e extremadas, produzem.
Pois há poucos dias, um ser humano foi assassinado nos Estados Unidos. Diante de sua esposa e de sua filha — uma criança — teve sua cabeça alvejada por um tiro de fuzil. Aparentemente, o disparo não foi feito por um declarado oponente, um marido traído, um inimigo de infância ou um assassino contratado por uma gangue rival, mas por alguém que era, até pouco tempo, um seu admirador.
Ele estava palestrando em um evento que ocorria numa universidade, com centenas de alunos e outras pessoas presentes, que foram ao local ouvi-lo discorrer sobre suas ideias de sociedade perfeita, de democracia, de liberdade e de direitos individuais. Pelo que se sabe, a vítima não estimulava ou provocava atos de violência per se, como surgir em locais públicos provocando os que pensavam de maneira diversa, para colher suas reações e postar em suas páginas de apostolado. Era o que se poderia chamar de cidadão de bem, bom pai de família e patriota, temente a Deus, trabalhador e honesto.
Todavia, enfeixava em seus pronunciamentos mensagens como: “os negros americanos, quando da escravidão, eram mais felizes, porque comiam, moravam e se vestiam de graça; e não praticavam tantos crimes”, ou “algumas mortes inocentes por armas de fogo valem a pena para defender seu porte e outros direitos dados por Deus”.
Talvez seu algoz concordasse com ele.
À exemplo do que recentemente se viu por aqui, no Brasil — com brasileiros defendendo a invasão do país por tropas estrangeiras a pretexto de livrar criminosos da cadeia e restabelecer a democracia que, absurdamente, estaria comprometida pela insistência de se submeter bandidos ao crivo judiciário — algumas dessas pessoas, considerando-se empoderadas por mandatos eletivos que ostentam, começaram a anunciar ações, inclusive legislativas, voltadas ao extermínio de pessoas, à demissão em massa dos que não concordam com sua visão estragada de mundo, à subtração de direitos fundamentais dos que se lhes opõem nessa cruzada desumana que integram.
Contam com apoio de quem, tal e qual aquela plateia presente à barbárie ocorrida no campus americano, sai de casa pela manhã, beija os filhos antes da faina diária, frequenta cultos e missas ao cabo das quais abraça e beija seus vizinhos de fé desejando-lhes “A paz de Cristo” — e considera a empregada uma pessoa da família.
Produzimos, aqui no Brasil, coisas valiosíssimas. Porém, outras igualmente especiais temos que trazer de fora. Lixo, degradação, iniquidade, ódio e delinquência não deveriam constar em nossos róis de importação. Já os temos em demasia por aqui — e precisamos enfrentá-los à medida de nossa dignidade.
*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV
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