Uma das frases mais comumente ouvidas ultimamente é: “como falar em golpe quando não foi disparado nenhum tiro no 8 de janeiro (de 2023)?” Como a maioria de nós ou não conhece a história ou se basta a ouvir narrativas, muitas delas romanceadas em filmes produzidos com o propósito de apresentar uma versão dos fatos conforme as perspectivas de seus autores, a primeira imagem que se tem de episódios comumente apelidados de “revoluções” é a de blindados e soldados disparando contra grupos igualmente armados ou desses enfrentando as forças regulares do Estado, entrincheiradas em quartéis ou palácios para proteger o regime e seus dirigentes.
Cenas de corpos espalhados pela rua, posteriormente identificados como terroristas ou heróis conforme o resultado da intentona, dos vitoriosos comemorando o sucesso de suas ações ou de pessoas presas como defensores ou revolucionários frustrados no seu intento, também compõem o imaginário popular. Passados alguns meses ou anos da tomada do poder ou de sua manutenção, vão se somando livros, artigos e tantos outros inventários contando episódios e revelando personagens até então desconhecidos, que povoaram o que se chama de “bastidores” desses movimentos, sua participação sendo aumentada ou diminuída conforme a relevância que se pretende registrar para a posteridade, maior quando essas pessoas incorporavam a imagem dos vitoriosos e seus propósitos salvadores ou, exatamente o contrário, quando encarnavam o mal que se combatia.
Assim, muitas pessoas ao longo de nossa história (nacional ou mundial) foram tachadas de heróis inspiradores ou inimigos públicos, conforme os “lados” que pertenciam quando do desfecho desses movimentos ou, ainda, conforme a romantização de suas participações nos eventos, principalmente quando pagaram com suas vidas nesses episódios.
Alguém acredita que Deodoro da Fonseca, acaso a Proclamação da República não se efetivasse — da qual não participou senão por liderar a tropa que ocupou o chamado Campo da Aclamação (hoje Praça da República, no Rio de Janeiro), convencido de que sua prisão havia sido decretada a pedido de um antigo desafeto com quem disputara, na juventude, o amor de uma mulher — seria conhecido como herói? E Tiradentes, se tivesse seguido para o exílio junto com outros líderes da chamada Inconfidência ao invés de morrer na forca e ter seu corpo esquartejado, seria porventura sequer lembrado como mártir brasileiro?
Portanto, a maior parte dos chamados heróis ou inimigos são assim passados para o povo não propriamente pelos seus feitos — gloriosos ou nefandos — mas porque convinha para os vitoriosos tais rótulos, transformando-os em símbolos máximos de virtude ou de vícios, quando muitos deles estavam apenas nos lugares e momentos certos ou errados naquela quadra histórica.
Num brevíssimo recorte histórico e, mais ainda, apertando a moldura geográfica para nela abrigar apenas o Brasil, tivemos por aqui incontáveis golpes e contragolpes, a maioria com a participação de integrantes de nossas Forças Armadas. Alguns deles foram exitosos em seus objetivos — depor o governo e instalar um novo, bem como alterar toda a legislação nacional e interferir na composição de nossas instituições —; outros foram frustrados.
Lembro aqui, em um breve recorte histórico, daquele ocorrido entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964. Sem maiores delongas em razão desse curto espaço narrativo, tropas do exército sediadas em Minas Gerais desceram até o Rio de Janeiro, formando um comboio composto por vários caminhões de transporte e unidades blindadas. Entre apoios de outras unidades sublevadas e repúdio de outras, o dia foi seguindo, e o então presidente, João Goulart (vice de Jânio Quadros que assumiu após a renúncia desse), resolveu voar do Distrito Federal até o Rio Grande do Sul, onde ensaiava-se um movimento de resistência.
Ainda no Estado Gaúcho, informado da situação política efervescente e temendo um derramamento de sangue no país, programou sua ida para o Uruguai. Na madrugada do dia 2 de abril, com Jango ainda em solo brasileiro — portanto presidente legítimo —, o então presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, agropecuarista e senador pelo Estado de São Paulo, rasgou o texto da Constituição em vigor e proclamou vaga a presidência, empossando interinamente o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili.
Uma semana depois, aos 9 de abril de 1964, uma junta militar autoproclamada “Revolucionária” editou o Ato Institucional nº 1, transformando o Congresso Nacional numa junta eleitoral que, exatos dois dias depois, elegeu indiretamente o Marechal Castelo Branco como novo presidente da República, mergulhando o país em mais de duas décadas de ditadura. Durante esse período, mandatos de políticos de oposição e ministros do Supremo, dentre centenas de brasileiros e brasileiras legitimamente eleitos ou integrantes de diversas instituições nacionais, foram cassados; milhares foram presos, sequestrados, torturados, mortos, e seus corpos desapareceram. A legislação nacional foi parcialmente alterada para ajustar o Estado e a sociedade aos caprichos do regime militar, uma Constituição foi promulgada (1967) e posteriormente alterada.
Tudo isso ocorreu sob a pisadura dos coturnos e na ponta de baionetas, muito embora apoiados entusiasticamente por importantes segmentos da imprensa, da igreja, do empresariado nacional e brasileiros convencidos de que o movimento visava resgatar o país das garras do “comunismo internacional”, protegendo o povo e as famílias da dissolução e do aviltamento dos costumes e da moral.
Golpes semelhantes, todos apoiados pelos EUA, ocorreram no Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia e Paraguai, sempre com o mesmo enredo e igual ilegalidade, diferenciando-se do “brasileiro” por três aspectos fundamentais. O primeiro: o número de pessoas assassinadas e torturadas naqueles países foi muito maior do que aquelas levadas aos porões do regime verde-amarelo, no qual se destacaram assassinos célebres, como o marginal torturador “Coronel Brilhante Ustra”, ídolo de muito bandido de quinta categoria ainda saudoso daqueles tempos.
O segundo: nossos vizinhos, uns mais, outros menos, julgaram os delinquentes (dentre eles alguns fardados e “estrelados”) e os mandaram para a cadeia por muitos anos. Nós, por força de uma “Anistia”, devolvemos ao país e às ruas muitos oposicionistas exilados, presos e sentenciados, sublimando os crimes — muitos deles imprescritíveis — praticados por alguns militares e seus comparsas, livrando-os de julgamentos e penitenciárias que seriam verdadeiros paraísos para suas vítimas ou para famílias inteiras destruídas pelas suas sanhas travestidas de patriotismo.
Em terceiro lugar, e bem consentâneo com o que foi tentado recentemente pela quadrilha em julgamento e apoiado por outros indigentes morais — alguns deles fantasiados com a bandeira nacional —, aquele golpe de abril de 1964 demandou tão somente um punhado de criminosos que se acreditavam salvadores da pátria, da democracia e de valores cristãos, e um bando de aloprados, ignorantes, covardes e inconsequentes, que ainda se acreditam decentes, gente de bem e de família.
Um domingo no parque: churrasquinhos, rezinhas e mesuras, idosos com suas Bíblias debaixo dos sovacos e nenhuma arma, senão celulares com os quais convocavam seus concidadãos de bem para a redenção do povo digno e decente do Brasil. Igualmente, sem tiro, porrada ou bomba.
*Gustavo Varella é advogado, jornalista, professor e mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV
*A opinião do articulista é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a posição do portal News Espírito Santo