O debate sobre a cobertura obrigatória dos planos de saúde é um dos temas mais relevantes no cenário jurídico e social brasileiro.
Isso porque envolve diretamente o direito fundamental à saúde, previsto no artigo 196 da Constituição Federal, e a atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula o setor.
As atribuições da ANS como agência reguladora
A ANS, como agência reguladora, edita normas para organizar a prestação de serviços na saúde suplementar, estabelecendo padrões de atendimento e definindo um rol de procedimentos obrigatórios a serem cobertos pelos planos de saúde.
Esse rol contém consultas, exames, terapias e tratamentos que devem, necessariamente, ser disponibilizados aos consumidores, de acordo com o tipo de contrato firmado.
Durante anos, consolidou-se na jurisprudência a interpretação de que o rol da ANS teria caráter exemplificativo, ou seja, não exauria todas as hipóteses de cobertura.
Isso permitia que pacientes buscassem no Judiciário a inclusão de tratamentos não previstos expressamente, quando fossem indicados por profissionais de saúde e essenciais à preservação da vida ou da integridade física do beneficiário.
A evolução do Rol Taxativo da ANS sob a ótica do Legislativo e Judiciário
Apesar das jurisprudências anteriores, em 2022, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Tema 1.082, fixou a tese de que o rol da ANS é, em regra, taxativo.
Isso significava que os planos de saúde não estariam obrigados a custear procedimentos fora da lista da ANS, salvo em hipóteses excepcionais. Essa decisão gerou grande controvérsia, pois trouxe risco de limitação do acesso a tratamentos inovadores e mais adequados para determinadas doenças.
O entendimento do STJ estabeleceu algumas exceções, permitindo cobertura fora do rol em casos específicos, desde que presentes determinados requisitos, como: inexistência de substituto terapêutico previsto, comprovação da eficácia do tratamento e recomendação por órgãos técnicos nacionais ou internacionais de renome.
Contudo, a repercussão social foi intensa. Diversas entidades, associações de pacientes e órgãos de defesa do consumidor apontaram que a taxatividade do rol representava um retrocesso no sistema de saúde suplementar.
A crítica central era de que a vida e a saúde do paciente não poderiam ser restringidas por uma lista administrativa que, apesar de constantemente atualizada, não acompanhava a velocidade dos avanços da medicina.
A elaboração e vigência da Lei dos Planos de Saúde
Diante da pressão social, o Congresso Nacional editou a Lei nº 14.454/2022, que alterou a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/1998).
A nova legislação determinou que o rol da ANS deve ser considerado como referência básica, mas não absoluta, permitindo que o Judiciário continue a mitigar sua aplicação quando houver indicação médica e comprovação da necessidade do procedimento.
Esse movimento legislativo reafirmou a ideia de que o rol é taxativo mitigado, ou seja, é obrigatório como parâmetro mínimo, mas não impede a cobertura de outros tratamentos em situações específicas.
Assim, o paciente volta a ter mais garantias de acesso a terapias inovadoras ou não contempladas na lista da ANS.
A mitigação do Rol taxativo da ANS
A mitigação do rol taxativo representa, portanto, um equilíbrio entre segurança regulatória e proteção da saúde do consumidor.
Se por um lado a ANS mantém o papel de padronizar e controlar os custos da saúde suplementar, evitando abusos e desequilíbrios financeiros, por outro lado, o sistema preserva a possibilidade de atendimento a necessidades excepcionais, garantindo a efetividade do direito à saúde.
Do ponto de vista prático, a mitigação tem sido aplicada em diversos casos concretos.
Tribunais têm determinado que planos de saúde cubram medicamentos de uso domiciliar, tratamentos para doenças raras, terapias experimentais com eficácia reconhecida e procedimentos não incluídos no rol, quando demonstrada a relevância médica.
A jurisprudência mais recente vem reforçando que o plano de saúde não pode substituir o médico assistente na decisão sobre o melhor tratamento.
Assim, a prescrição médica, aliada a evidências científicas e à inexistência de alternativa terapêutica no rol, torna-se elemento central para fundamentar a obrigatoriedade da cobertura.
Outro ponto de destaque é que a mitigação do rol também protege pacientes em situação de vulnerabilidade, como crianças, idosos e pessoas com doenças graves, que muitas vezes dependem de terapias ainda não incorporadas formalmente pela ANS.
Além disso, a atuação do Poder Judiciário se revela como instrumento essencial de controle social, evitando que interesses econômicos das operadoras prevaleçam sobre a preservação da vida e da dignidade humana.
Sob o aspecto econômico, as operadoras de saúde argumentam que a flexibilização do rol pode gerar desequilíbrio contratual e aumento de custos.
Contudo, o contraponto é que o setor deve se adaptar às demandas da medicina moderna e ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Em síntese, a mitigação do rol taxativo da ANS representa uma vitória para a proteção da saúde do consumidor.
Trata-se de um modelo jurídico que valoriza a regulação estatal, mas sem engessar o direito do paciente ao tratamento adequado.
Assim, o sistema atual busca uma conciliação entre a função regulatória da ANS, a sustentabilidade dos planos de saúde e a preservação do direito fundamental à saúde.
Portanto, o tema ainda seguirá em constante debate, seja nos tribunais, seja no âmbito legislativo, mas já se consolidou o entendimento de que o rol da ANS é taxativo mitigado, de modo a garantir maior segurança jurídica e, ao mesmo tempo, efetividade no acesso à saúde suplementar.
*Escrito pelo advogado João Batista Dallapiccola Sampaio, em conjunto com Marcelo da Silva Henriques, advogado atuante no Direito Público e Civil, com ênfase no Direito Médico e da Saúde, e pelo bacharel em direito Gabriel Augusto de Azevedo Sampaio.