A relação entre legislação tributária e estrutura familiar é um tema que frequentemente gera debates no Brasil, especialmente quando se trata da transmissão de patrimônio entre gerações. Enquanto o sistema tributário brasileiro é conhecido por sua complexidade e carga elevada, diversos dispositivos legais visam proteger as famílias, garantindo isenções e benefícios fiscais em situações específicas, como heranças e doações. Essas regras não apenas refletem preocupações econômicas, mas também valores sociais ligados à preservação do núcleo familiar, criando uma linha tênue entre a valorização do patrimônio e a importância familiar.
Um dos exemplos mais relevantes é a isenção do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) para herdeiros em casos de imóveis de menor valor. No estado de São Paulo, por exemplo, a Lei nº 10.705/2000 estabelece isenção para heranças de imóveis residenciais cujo valor não ultrapasse R$ 1 milhão, desde que o bem seja mantido como moradia pelo herdeiro por pelo menos seis meses após a sua transmissão. Essa medida busca evitar que herdeiros sejam obrigados a vender o imóvel para pagar impostos, preservando assim o direito à moradia e a continuidade do bem familiar.
Outros estados também adotam regras semelhantes, com variações nos valores de isenção. No Rio de Janeiro, a Lei nº 2.657/1996 concede isenção para imóveis residenciais de até R$ 300 mil, enquanto em Minas Gerais, a Lei nº 15.124/2004 estabelece um limite de R$ 500 mil. Essas diferenças regionais refletem as disparidades econômicas do país e a autonomia dos estados na regulamentação do ITCMD.
Enquanto isso, no Espírito Santo a Lei nº 11.307/2021 não apenas estabelece uma alíquota reduzida, como também prevê isenções significativas. Diferentemente de outros estados, aqui a transmissão do único imóvel residencial está isenta do imposto, independentemente do valor – benefício que reflete uma preocupação genuína do Estado com a manutenção da moradia familiar, além de representar um diferencial em contraste com outras regiões do país.
Além da transmissão por herança, muitas famílias recorrem a doações em vida como estratégia de planejamento sucessório. O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) permite que pais doem bens a filhos sem burocracia excessiva, desde que respeitados os direitos de outros herdeiros necessários (cônjuge, descendentes e ascendentes). Em alguns casos, essas doações podem ter redução ou isenção tributária, dependendo do valor e da finalidade.
Nessa perspectiva, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em sua obra “As Estruturas Sociais da Economia” (2000), discute como o patrimônio familiar não é apenas uma questão econômica, mas também um mecanismo de favorecimento oligárquico. No Brasil, embora as isenções fiscais ajudem famílias a preservar seus bens, a concentração de riqueza ainda é um desafio estrutural, tornando-se impreterível ao menos sua fiscalização adequada.
Outro benefício relevante é a isenção do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) em casos de transferência de propriedade entre cônjuges ou companheiros em regimes de separação total de bens ou divórcio. A Lei nº 9.636/1998 e o Estatuto das Cidades (Lei nº 10.257/2001) estabelecem que, em situações de partilha amigável, não incide o imposto, desde que o imóvel seja destinado à moradia da família. Essa medida visa evitar onerar ainda mais processos já delicados, como dissoluções conjugais.
Apesar dessas isenções, o debate sobre a justiça tributária permanece. Enquanto algumas famílias podem se beneficiar de estratégias de planejamento sucessório, muitas outras sequer têm margem para tal preocupação. O filósofo John Rawls, em “Uma Teoria da Justiça” (1971), argumenta que um sistema tributário justo deve considerar não apenas a eficiência econômica, mas também a redução das desigualdades. No Brasil, embora algumas isenções atendam a princípios de proteção familiar, a estrutura tributária regressiva ainda penaliza os menos privilegiados.
Assim, as isenções tributárias para herdeiros e famílias cumprem um papel importante ao evitar a desagregação de patrimônios essenciais, como a moradia. No entanto, é preciso equilibrar essas políticas com uma tributação que distribua melhor a carga fiscal. Como observou o economista Thomas Piketty em “O Capital no Século XXI” (2013), “a história da distribuição de riqueza é sempre profundamente política” — e no Brasil, essa história ainda está sendo escrita.
Portanto, embora os benefícios fiscais para herdeiros sejam legítimos, é fundamental que o Estado avance em direção a um sistema tributário onde a proteção familiar não esteja intrinsecamente relacionada à oligarquia, mas sim, aos propósitos da movimentação econômica.
As leis tributárias que protegem heranças e doações familiares revelam um paradoxo fundamental da modernidade: enquanto se apresentam como mecanismos de preservação da dignidade e da continuidade familiar, também fomentam estruturas oligárquicas. A filosofia de John Rawls nos lembra que a justiça deve ser medida pelo seu impacto nos menos favorecidos, não apenas pela proteção daqueles que já detêm riqueza.
Sob uma perspectiva sociológica, Bourdieu nos alerta que o patrimônio nunca é apenas econômico – ele é também simbólico, cultural e político. No Brasil, onde a concentração de riqueza é histórica, as leis tributárias muitas vezes funcionam como um espelho: refletem menos uma preocupação com a equidade e mais a manutenção de uma ordem social que beneficia os mesmos grupos.
Dessa forma, a verdadeira questão observada não seja se as leis protegem a família, mas quais tipo de família e, por extensão, que tipo de sociedade é moldada. Como Pikettydemonstra, a riqueza tende a se autoperpetuar quando não há contrapesos eficazes. Se o Estado quer de fato honrar o princípio da justiça social, não basta somente proteger heranças; é preciso garantir que todos tenham algo digno a herdar.
No fim, a discussão sobre herança e tributação não é apenas técnica, mas ética sobre qual Brasil que estamos construindo para as próximas gerações, um onde a lei protege o passado ou um onde ela abre caminho para um futuro igualitário? Tais respostas vão além dos códigos tributários, mas sim nas escolhas políticas que fazemoscomo sociedade.
João Batista Dallapiccola Sampaio é advogado militante há 39 anos
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