João Batista Dallapiccola Sampaio – “Tempo como bem jurídico”

Na sociedade contemporânea globalizada, onde a velocidade das informações e dos acontecimentos da vida ganha cada vez mais força, o cidadão que perde horas em filas, agendamentos, deslocamentos e sucessivas tentativas de resolver problemas em repartições, órgãos e locais de atendimento ao público experimenta dores que vão além do aborrecimento e da frustração, as quais o ordenamento jurídico entende progressivamente se tratar de danos passíveis de reparação indenizatória. 

 A teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, atualmente aplicada de forma reiterada em nossos tribunais e no STJ, desenvolvida pelo professor Marcos Dessaune, consolida essa mudança: o tempo útil exigido do indivíduo para remediar falhas de serviço pode, em determinadas condições, ser reparado por indenização. Mais recentemente, o debate saiu dos tribunais e entrou no Congresso, comprojetos de lei buscam reconhecer o tempo como bem jurídico e até obrigar o próprio Estado a reparar esse prejuízo.

 Explicando de forma breve o desvio produtivo,podemos dizer que é o evento danoso que se consuma quando o consumidor, sentindo-se prejudicado em razão de falha em produto ou serviço, gasta o seu tempo de vida e se desvia de suas atividades cotidianas para resolver determinado problema. 

 Ainda segundo o doutrinador, a atitude do fornecedor,ao se esquivar de sua responsabilidade pelo desvio produtivo, gera a relação de causalidade existente entre a prática abusiva e o dano gerado pela perda do tempo útil. Na prática cotidiana, enquadram-se situações como deslocamentos repetidos a agências que não atendem, falhas administrativas que obrigam múltiplas visitas ou protocolos eletrônicos ineficazes que exigem insistência em diversas ocasiões do usuário.

 Assim, o Superior Tribunal de Justiça passou a aplicar expressamente essa teoria a partir de decisões proferidas desde 2018, ressaltando que a perda injustificada do tempo do consumidor pode ser considerada um dano passível de indenização, sobretudo nas relações amparadas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Em seus comunicados e julgados, o STJ destacou que reconhecer esse tipo de dano representa uma forma de proteção efetiva ao tempo do consumidor.

 Apesar de não ser uma visão unânime, este entendimento veio se espalhando em decisões dos diversos tribunais regionais e estaduais por todo opaís: alguns aplicam o entendimento de forma ampla, capaz de gerar dano e indenização sem a coparticipação de outros elementos agravantes em relação ao cidadão lesado pelo desvio, ao passo que outros aplicam a teoria do desvio quando presentesoutros elementos que agravam e pesam sobre os consumidores atingidos.

 Esse entendimento doutrinário e judicial traz na prática dois aspectos: 1º) ele oferece instrumento jurídico para punir e desestimular práticas ineficientes de serviços; e 2º) ele pressiona por medidas concretas de melhoria, como agendamento efetivo, filas virtuais, otimização e clareza de informações nosatendimentos, o que diminui o custo social do tempo perdido.

 Neste contexto, a aplicação ampliada da teoria do desvio passou a ganhar força no Legislativo e no entendimento de responsabilização do Estado pelos danos causados pela falha ou má prestação de serviços ao cidadão.  Duas propostas de mudança na legislação merecem ser citadas neste contexto: o PL 2.856/2022 do Senado Federal e o PL 3.496/2024 da Câmara dos Deputados.

 A PL 2.856/2022 propõe inserir expressamente no CDC a ideia do tempo como bem jurídico, aperfeiçoando critérios de reparação e prevenção do desvio produtivo, medida que tende a uniformizar parâmetros e facilitar a comprovação judicial do dano.

 Em outra frente, a PL 3.496/2024 pretende responsabilizar por desvio produtivo as pessoas jurídicas de direito público interno, tornando o Estado potencial sujeito de obrigação de reparar o tempo perdido em face de falhas administrativas. Esta mudança na legislação faria com que o usuário de serviços públicos como saúde, trânsito, segurança social, agências federais e municipais tivesse a base legal direta para pleitear indenização pela perda de seu tempo útil.

 Ocorre que este último projeto da Câmara levanta questões constitucionais e práticas, como a distinção das falhas típicas de serviços públicos daquelas decorrentes de circunstâncias alheias, bem como compatibilizar a responsabilização com regimes administrativos especiais e evitar um aumento desordenado de demandas.

 Positivar o tempo como bem jurídico tem vantagens óbvias: uniformiza parâmetros, dá previsibilidade aos julgadores e cria incentivo regulatório para investimentos em tecnologia e processos que reduzam a perda de tempo como, por exemplo, agendamento eletrônico, protocolos confiáveis e atendimento multicanal. De outro lado, a positivação com a redação mal calibrada pode gerar demandas massivas, sobrecarregar o Judiciário e criar problemas de quantificação exagerada de danos imateriais. É preciso equilíbrio, ampla discussão e passos firmes para a positivação desse entendimento.

 Após essa pequena, mas válida reflexão, concluímos que a tutela do tempo como bem jurídico impõe um imperativo de eficiência à administração pública e aos prestadores privados. Ao reconhecer a reparação pelo desvio produtivo, o Judiciário atua como mecanismo corretivo e normativo, internalizando o dever de eficiência e a boa-fé objetiva na prestação de serviços. Essa responsabilização, assentada em prova e em parâmetros jurisprudenciais, estimula a adoção de protocolos, parâmetros objetivos de atendimento, digitalização e outras medidas de governança administrativa que diminuam a perda de tempo do usuário. Do ponto de vista dogmático, protege-se um interesse imaterial que se entrelaça com princípios constitucionais, notadamente a dignidade da pessoa humana e a eficiência administrativa. 

 Em suma: transformar o tempo perdido em direito reclamável não é apenas conceder uma indenização, é redesenhar a prestação de serviços para que o tempo do cidadão deixe de ser mercadoria e passe a ser efetivamente resguardado pelo Direito.

*Artigo escrito pelo advogado João Batista Dallapiccola Sampaio em conjunto com o advogado e procurador do Município de Castelo/ES Luiz Antônio Fittipaldi Binda.

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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