João Gualberto – “Marapé”

Com a liberdade da ficção e os conhecimentos da história, grandes autores formam o tecido dessa teia que nos mostra as significações imaginárias sociais que nos enredam.

Tenho tentado reunir, na boa literatura que se faz no Espírito Santo, elementos que nos mostrem como foi construído o nosso imaginário social e venho escrevendo sobre isso. Com a liberdade da ficção e os conhecimentos da história, grandes autores formam o tecido dessa teia que nos mostra as significações imaginárias sociais que nos enredam.

Dentro dessa perspectiva, li recentemente um romance bastante interessante, do qual gostei muito. Trata-se de Marapé, de Levy Rocha, editado em 1978 por meio do então Ministério da Educação e Cultura. A leitura foi feita por indicação de meu amigo Francisco Aurélio Ribeiro, cujos conhecimentos em termos de literatura são excepcionais, um dos maiores conhecedores do que se produz nessa área em nosso estado, sendo ele próprio um autor muito respeitado.

Levy Rocha, capixaba nascido em 1916 na região cenário do romance, São João do Muqui, foi casado com a importante educadora Anna Bernardes da Silveira. Ele passou a infância no arraial de São Felipe, sendo o relato produto de suas recordações e vivências. Eu gosto muito de analisar esse tipo de literatura, na qual o que se passa mistura ficção e realidade, permitindo ao leitor vislumbrar com clareza a alma e o imaginário do nosso povo.

São dele também as obras Viagem de Dom Pedro II ao Espírito Santo, Viajantes Estrangeiros no Espírito Santo, Crônicas de Cachoeiro, De Vasco Fernandes Coutinho aos Contemporâneos, além de outras contribuições à vida intelectual capixaba e brasileira com a publicação de artigos em jornais e revistas. Produziu, portanto, uma obra importante em termos da historiografia capixaba. O romance articula o bom texto, a vivência pessoal e os conhecimentos de história.

A cidade que dá nome ao livro, Marapé, chama-se atualmente Atilio Vivacqua e fica ao Sul do Espírito Santo, não muito longe de Cachoeiro de Itapemirim. No romance, entretanto, chamava-se ainda São Felipe, pois a ação se passa nos tempos da primeira república, no mundo dos coronéis e do coronelismo. Essa é, aliás, a sua graça, a exploração bem estruturada daquele mundo antigo e cheio de hierarquias, violências e desigualdade. Nada de romantizar o passado.

A pobreza em que estavam mergulhados os personagens chama a nossa atenção. Narrando o dia a dia de um camponês que trabalha na roça de seu patrão, diz o autor: “Andava sempre sem dinheiro. Só havia fartura de miséria e de serviço. A lavoura era trabalho para quatro homens. Tocava com a única ajuda da mulher.”

Havia também os ambientes frequentados pelos coronéis, os proprietários de terra, suas famílias e agregados. Esses lugares eram descritos com os requintes da época em termos de mobiliário, decoração e outros detalhes. Já os ambientes da imensa maioria dos moradores do lugarejo eram despidos de tudo, onde havia somente trecos improvisados e desconfortáveis.

Comiam muita abóbora, batata-doce, inhaminho, mandioca, taioba; era tudo comida de engordar porco, mais satisfazia os muitos filhos que cada casal pobre possuía. Havia ainda os peixes: acarás, piabas, lambaris, bagres e traíras. Era o mundo dos pobres trabalhadores do campo do interior do Espírito Santo, que a maioria dos leitores muito bem conhece.

Em Levy Rocha, tanto quanto em outros autores aos quais tenho me referido, neste espaço, para ilustrar a construção do imaginário capixaba (Renato Pacheco, Getúlio Neves, Adilson Vilaça, Pedro Nunes e outros), também temos a presença sempre marcante da violência, encarnada pela presença policial. Nesses tempos que antecederam a chamada Revolução de 1930, era nas pequenas delegacias que o pau quebrava no lombo dos pobres.

Coronel Odorico representava e exercia essa violência do poder contra o povo desfavorecido, organizava as eleições fraudadas e controlava os postos públicos, sobretudo os da polícia. Em São Felipe, mandava em todo mundo. Foi vencido pelos que implantaram um novo governo, que, como todos sabemos, não mudou tanto assim esse quadro de penúria e violência contra os mais pobres.

No final do romance, como em um desabafo, diz o narrador: “Bastava de tantas mortes. Morriam os bons, assassinados; os covardes, suicidados; os maus, tocaiados, morriam crianças pobres, de fome.

Afinal de contas, morrer por que, se viver era tão bom? Morar na lavoura, numa casa de estuque e chão batido, com uma companheira sacudida, trabalhadeira, de mãos grossas de calos do cacumbu, com mãos de macho, rodeados da filharada.”

Era assim o Espírito Santo das primeiras décadas da república, no início do século XX, para os que não foram premiados com a sorte de pertencer às famílias poderosas; um estado muito bem retratado pela escrita saborosa de Levy Rocha.

*João Gualberto Vasconcellos é mestre e professor emérito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Doutor em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciência Política de Paris, na França, Pós-doutorado em Gestão e Cultura. Foi secretário de Cultura no Espírito Santo entre 2015 e 2018.

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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