No Brasil, tudo assume caráter político. No que concerne à megaoperação conduzida pelo Estado do Rio de Janeiro, nesta terça-feira (28), não poderia ser diferente. As mais de cem mortes, resultantes da ação policial, reacenderam a polarização discursiva que estrutura o debate público nacional: de um lado, a narrativa do heroísmo institucional na defesa da ordem; de outro, a denúncia de uma política de segurança fundada na necropolítica e na seletividade penal. O episódio reitera a dificuldade do país em articular um discurso racional sobre segurança pública, frequentemente capturado por paixões ideológicas e simplificações morais, cuja alavanca se apoia na inflamação dos conglomerados políticos adversários.
Todavia, a análise desse fenômeno – triste e preocupante – exige ultrapassar as fronteiras do debate binário. A intervenção policial não emerge no vácuo: ela é consequência direta da expansão e da consolidação de estruturas criminosas complexas, como o Comando Vermelho, que há décadas operam como poderes paralelos em múltiplas regiões do Rio. A facção, detentora de uma lógica empresarial e territorial, sustenta-se sobre um tripé que combina economia ilícita, coerção armada e legitimação social. Seu enraizamento nas comunidades fluminenses não decorre apenas da força das armas, mas da substituição funcional do Estado em dimensões básicas da vida social – desde a oferta precária de segurança e assistência até a mediação de conflitos cotidianos.
A omissão estatal crônica, que não se resume exclusivamente aos governos contemporâneos, associada a políticas públicas intermitentes e desarticuladas, permitiu que o crime organizado se institucionalizasse como uma espécie de poder de fato, corroendo a autoridade do Estado de Direito. O Comando Vermelho, longe de ser um conjunto difuso de criminosos, constitui uma organização de governança paralela, dotada de racionalidade administrativa, capacidade logística e controle comunicacional. Sua influência transcende o âmbito local e conecta-se a redes interestaduais e transnacionais do tráfico de drogas e armas, o que confere à crise fluminense um caráter de segurança nacional.
Nesse cenário, o Estado é chamado a intervir em um território onde sua presença se faz quase exclusivamente pela força. A megaoperação, portanto, representa o sintoma de uma crise de governabilidade periférica, em que o monopólio da violência legítima é sistematicamente contestado. A resposta armada do poder público, embora tecnicamente legítima, revela o déficit estrutural de inteligência, planejamento e presença social continuada. Em vez de ser expressão de soberania, a operação massiva expõe a fragilidade de um Estado que perdeu a capacidade de mediar conflitos sem recorrer à letalidade.
Ao mesmo tempo, não se pode incorrer no erro analítico de atribuir ao aparato policial a totalidade da culpa, tal qual eufemizar o crime sob narrativas que apelam às pautas ideológicas, culturais e/ou raciais. O enfrentamento à criminalidade organizada exige coerência sistêmica e articulação interinstitucional, já que a polícia, isoladamente, é apenas o instrumento final de uma cadeia decisória que envolve políticas sociais, urbanas e econômicas. Sua atuação, quando descolada de estratégias de longo prazo, tende a reproduzir o ciclo de violência que pretende conter.
A crítica, portanto, deve alcançar não apenas o excesso da força policial, mas o déficit de Estado que a precede – do Estado do Rio de Janeiro e de todo Brasil. A ausência de políticas públicas eficazes, de educação de qualidade, de infraestrutura urbana e de oportunidades econômicas sustenta o caldo de cultura onde o crime floresce. O domínio do Comando Vermelho é, nesse sentido, tanto causa quanto consequência de uma falência administrativa crônica — um produto da omissão pública e da descontinuidade das políticas de segurança cidadã.
O enfrentamento dessa realidade demanda mais do que operações espetaculares. Requer inteligência estratégica, integração federativa, investimento em prevenção e fortalecimento comunitário. É necessário reconstruir a presença estatal sob bases legítimas — não apenas por meio da coerção, mas pela oferta de direitos. Um Estado que apenas atira é um Estado que já perdeu a capacidade de governar.
O Rio de Janeiro vive, assim, a materialização de um paradoxo, uma vez que combate o crime com a mesma lógica que o engendrou. Enquanto as políticas de segurança permanecerem subordinadas a cálculos eleitorais e ao fanatismo ideológico, a violência seguirá sendo o idioma político da exclusão. O desafio, portanto, não é apenas conter o avanço do tráfico, mas, em proporção semelhante, redefinir o papel do Estado na produção da ordem social, substituindo o ciclo da repressão pelo da reconstrução institucional.
*João Pedro Rodrigues Louzada é estudante do 2° período do curso de Medicina na EMESCAM.
