É uma brincadeira muito comum dizer que, no Brasil, até o passado é incerto. O país sempre revisita temas que pareciam resolvidos há muito tempo. Vez ou outra, nos pegamos discutindo se Getúlio Vargas foi ou não um ditador, se Juscelino Kubitschek fez o Brasil crescer ou se endividar em “50 anos em 5”, quem matou Odete Roitman.
Na Reforma Tributária, vem acontecendo a mesma coisa. As mudanças legislativas, que deveriam apontar para o futuro, parecem ter voltado seus holofotes para rever um tema que já poderia ser considerado superado. Isso passou despercebido pelo contribuinte, mas chamou a atenção dos profissionais do direito tributário.
Trata-se da chamada “tese do século”, julgada no Recurso Extraordinário nº RE 574.706/PR, pelo Supremo Tribunal Federal. Resumidamente, a tese impede que os tributos PIS e Cofins incidam sobre o valor do ICMS embutido no faturamento de quem fornece mercadorias e serviços. O STF modulou sua decisão para que os efeitos ocorressem a partir de 15 de março de 2017 e determinou que o desconto fosse do ICMS destacado na nota fiscal. Pelo entendimento, o Supremo afirmou que um tributo não poderia incidir sobre o valor de outro tributo nesse caso.
Ocorre que, recentemente, em uma declaração do considerado “pai da reforma”, o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard Appy, foi informado aos contribuintes que os novos tributos introduzidos pela Reforma — o CBS e o IBS — irão incidir sobre os valores de ICMS e ISSQN, que oneram o valor de mercadorias e serviços. Isso ocorrerá porque, apesar de os primeiros substituírem os últimos, por algum tempo o sistema tributário irá conviver com todos eles, até que a transição esteja completa em 2033.
A notícia pegou o mercado de surpresa, pois não foi algo tratado ao longo da tramitação da Reforma Tributária, mas apenas após o vigor da emenda constitucional e da lei complementar que a introduziram. Também é uma medida vinda de forma direta e unilateral do Poder Executivo, que quebra a fundada expectativa dos contribuintes quanto à continuidade da decisão do STF na chamada tese do século. Afinal, se o CBS substitui o PIS e a Cofins, e o IBS substitui o ICMS e o ISSQN, a decisão do Supremo poderia ser facilmente aplicada, por analogia, às novas figuras tributárias.
Essa é uma medida que também faz refletir sobre o conflito entre os poderes. Se o atrito entre Congresso e STF, e entre Congresso e Governo, domina as manchetes atualmente, é necessário observar o avanço da Fazenda Pública na incidência de impostos sobre impostos como algo que provoca choque entre o STF e o Poder Executivo.
Não faz sentido retornar a pontos já superados, abalando a harmonia entre poderes que deveriam ser harmônicos. Seguindo dessa maneira, a judicialização é certa. A exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins já havia gerado uma infinidade de teses “filhas”, que buscaram retirar outros tributos de outras bases de cálculo. Há medidas para fazer o mesmo com o ISSQN. Há precedentes que afastaram o ICMS da base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB) e da contribuição previdenciária. Outros retiraram o ICMS da substituição tributária da base de PIS e Cofins, assim como o ICMS do diferencial de alíquotas entre estados.
Por outro lado, há decisões que mantiveram o PIS e a Cofins na base de cálculo do ICMS, por falta de previsão legal para a exclusão, e que autorizaram a incidência da CPRB sobre a própria base de cálculo, bem como o ISS na apuração do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) pelo lucro presumido.
A todas essas lides será adicionada a discussão judicial sobre a composição do IBS e do CBS, levando em conta os valores de ICMS e ISSQN. No final das contas, será mais uma fronteira a ser desbravada por contribuintes, juristas e contadores, judicializando o passado.
E judicializar o passado confirma que, no Brasil, sempre há espaço para um remake. Afinal, vale tudo!
*Leonardo Miranda Maioli é advogado tributarista, bacharel em Direito e Ciências Contábeis pela UFES, pós-graduado em Direito Tributário e mestre em Direito pela UFES.
