A luta contra o feminicídio no ES: Jacqueline Moraes convoca capixabas a encorajarem denúncias de violência

Primeira mulher a ocupar a vice-governadoria do Espírito Santo e, desde 2023, primeira Secretária de Estado das Mulheres, Jacqueline Moraes fala com a autoridade de quem sabe, por experiência própria, o quanto ainda é duro para uma mulher conquistar autonomia – econômica, social e emocional. Sua trajetória, que começa como camelô e chega ao Palácio Anchieta, dá força e legitimidade à sua missão atual: garantir que as políticas públicas atinjam as mulheres onde elas vivem, sobretudo nas periferias, no interior, nas áreas rurais.

Em entrevista, ela explica que o programa Mulher Viva+ nasceu com um propósito estratégico: romper o isolamento das políticas para mulheres, articulando toda a estrutura do governo. Saúde, educação, assistência, cultura, esporte, empreendedorismo, tudo conectado. “A maior força do programa é o enfrentamento à violência”, reforça. O resultado foi a inclusão do tema como eixo estruturante do Estado Presente, garantindo que a agenda de proteção e equidade de gênero se tornasse parte da política pública permanente.

Essa capilaridade se concretiza com o Fortalece Mulheres, que leva estrutura para os municípios organizarem seus próprios organismos de políticas para mulheres, mesmo onde não há secretaria formal. Treinamento de equipes, fóruns mensais, pactos estaduais e até kits com carro, notebook e data-show ajudam cidades pequenas a ter atuação real. “Se o município não tem secretaria, precisa ter ao menos um organismo intersetorial”, resume.

O enfrentamento à violência – urgência que ela não suaviza – tem metas ousadas: feminicídio zero. Jacqueline reconhece o tamanho do desafio, mas também aposta na prevenção e na ampliação de denúncias. Dados recentes mostram: 36 feminicídios no ano anterior, apesar de 14 mil medidas protetivas emitidas. “A denúncia transforma vulnerabilidade em proteção”, afirma. E campanhas como Laço Branco e Não é Não reforçam que assédio e importunação sexual são crime, mobilizando homens como parte da solução.

Ao lado da proteção, a secretaria trabalha autonomia. E autonomia, para Jacqueline, começa por renda própria. Com a Caravana Margaridas e parcerias com Sebrae e programas estaduais de crédito – que somam mais de R$ 250 milhões liberados, sem necessidade de avalista – mulheres de pequenos municípios e comunidades rurais recebem cursos, kits de trabalho e apoio para empreender. “Isso dá dignidade, independência”, diz.

E autonomia também passa por poder político. Por isso, a secretaria investe na formação de lideranças femininas, com foco nas mulheres negras, indígenas, quilombolas e ciganas – aquelas que historicamente tiveram menos espaço nos centros decisórios.

O planejamento até 2026 inclui fortalecer centros de referência em todas as regiões e garantir orçamento consistente – que já saltou de R$ 7 milhões para mais de R$ 30 milhões. Novos recursos da reparação por desastres ambientais devem apoiar mulheres afetadas por desemprego e perda de renda.

Ao falar de legado, Jacqueline é objetiva: decisão política, governança e orçamento. Sem isso, diz, a pauta das mulheres não sai do discurso. Pela primeira vez, o Espírito Santo tem uma secretaria estruturada para que essa política não dependa do governo de plantão.

Confira como foi a conversa do diretor de Conteúdo do News ES, Eduardo Caliman, com a secretaria, no último dia 5 de dezembro

News ES: Secretária, gostaria de começar falando sobre o programa Mulher Viva+, um dos eixos da Secretaria. Qual o balanço que a senhora faz dos resultados mais recentes, especialmente em relação à articulação com outras secretarias e os municípios?

JACQUELINE MORAES: A Secretaria tem pouco tempo – apenas três anos – é uma secretaria nova. Desenvolvemos um programa que, em primeiro lugar, tinha o objetivo de gerar intersetorialidade; ou seja, olhar as outras secretarias como potências para a execução de política pública para as mulheres. Criamos uma grande mesa de debate para coordenar essas ações. A política para mulheres é articulada e coordenada pela Secretaria das Mulheres, mas ela acontece na Saúde, na Educação, na Assistência, no Esporte, na Cultura e no Empreendedorismo. Esse é o olhar intersetorial. Para isso, criamos um programa e percebemos que a maior força de trabalho nossa é o enfrentamento à violência. Convidamos a Secretaria de Planejamento, que construiu junto com a gente um terceiro eixo do Estado Presente, que para mim foi o maior êxito do Mulher Viva+: fazer parte do eixo estrutural do programa, que já estava organizado em dois grandes eixos – proteção social e proteção policial – e passa a ter o terceiro eixo, Mulher Viva+. Nesse eixo conseguimos trabalhar promoção da equidade de gênero e enfrentamento à violência com ações coordenadas pela Secretaria com diversas secretarias. O Mulher Viva+ é um case de muito sucesso pela capacidade que o Espírito Santo tem de dialogar em todas as frentes. Como contrapartida para a sociedade, precisávamos avançar em outra frente: o Fortalece Mulheres, dentro do Mulher Viva+, que olha para os municípios. Quando começamos, só havia quatro organismos municipais de políticas para mulheres. Então criamos o projeto Fortalece Mulheres, com o Kit Mulher Viva+ – carro, data show e notebook – para incentivar prefeitos a estruturar esses organismos. Vemos o Mulher Viva Mais como um guarda-chuva com vários programas articulados da nossa pasta. Os municípios receberam bem. Muitos dizem: “Aqui não temos condição de ter uma secretaria”, e respondemos: “Mas dá para ter um organismo que faça política intersetorial no município”. Fazemos a formação desses gestores; temos o Fórum de Gestores e encontros mensais para pautar a agenda. Com isso, eles assinam o Pacto Estadual de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres – o Espírito Santo é signatário junto ao Governo Federal. Também assinamos o Plano Estadual de Políticas para as Mulheres e agora caminhamos para a construção de um fundo, que só é possível quando os municípios se organizam.

E sobre alcançar mulheres que ainda não denunciaram agressões ou estão no início do ciclo de violência?

Desde que assinamos o pacto, colocamos como meta feminicídio zero no Espírito Santo. Colocamos essa meta ousada e que pode parecer utopia porque acreditamos que é possível desconstruir a ideia de que a mulher é posse do homem. O resultado final do feminicídio quase sempre é o mesmo: ele não aceitava o fim da relação e a matou. Temos casos de mulheres casadas há mais de 20 ou 30 anos que decidem terminar e ele não aceita. Essa ideia da posse parte do machismo estrutural: “ela é minha propriedade”. Precisamos desconstruir isso. Fazemos política de prevenção, mas há um parêntese importante: a denúncia. A Lei Maria da Penha faz 20 anos no ano que vem e dá os instrumentos legais para punir o agressor. Mas a mulher precisa confiar na rede. Medidas protetivas salvam vidas. No ano passado tivemos 14 mil mulheres com medidas protetivas e 36 feminicídios. Se somarmos as tentativas de homicídio, o número ainda é alto, mas a diferença mostra a importância da denúncia. Medida protetiva salva vida porque é uma ação coordenada: Ministério Público, Defensoria Pública, nossos Centros e Núcleos Margarida, CRAS, a Saúde. Também fazemos busca ativa: alguns casos chegam na saúde e não chegam na delegacia. Qualquer pessoa pode denunciar – se um porteiro ouve gritaria e criança chorando, pode denunciar. O palco da violência é dentro de casa e os filhos são plateia. Quando a sociedade se incomoda, os resultados aparecem. Sempre dizemos: se a mulher está pronta para denunciar, não tire dela essa coragem. O perfil do feminicida é esse: trabalhador, sustenta a casa – e mata quando não aceita perder. Já participei de trabalhos que mostram a existência de um violentômetro: a violência é progressiva. O relacionamento começa bem, depois vem o xingamento, humilhação, controle do celular, do carro. Depois quebram o telefone, vem o primeiro empurrão. Depois vem o tapa – e dali para facada ou tiro é um pulo. Pesquisas mostram que a mulher leva de 7 a 15 anos para denunciar. E ela justifica: “Foi só uma grosseria”, “Também fiz isso”. Microagressões são agressões. Dos 36 feminicídios do ano passado, apenas duas vítimas haviam denunciado os agressores. Trinta e quatro não.

A Secretaria realizou uma campanha esta semana nos terminais da Grande Vitória contra a importunação sexual no transporte coletivo. Como foi essa ação?

Fizemos dentro dos 21 Dias de Ativismo, por determinação do Ministério das Mulheres. Trabalhamos importunação sexual e a campanha do Laço Branco. Até 2018, tocar o corpo de uma mulher sem consentimento não era considerado crime. Hoje é, com pena de 1 a 5 anos de prisão. Temos casos aqui no Espírito Santo de homem ejaculado no ombro de mulher. É nojento, mas é a realidade de quem usa transporte coletivo. Pregamos cartazes nos ônibus para orientar as mulheres, porque muitas sentem vergonha e abalo psicológico. Também entregamos material para os homens: o corpo da mulher não é para ser tocado quando ela não quer. Estamos convocando os homens – eles precisam se incomodar. A campanha “Não é Não” começou com quatro jovens sendo forçadas a dar beijo no Carnaval. Depois do “não”, tudo é crime. Levaremos o protocolo “Não é Não” também para as praias e festas de verão.

E os resultados da Caravana Margaridas e do apoio ao empreendedorismo?

Temos feiras empreendedoras em parceria com a Aderes, em 2 ou 3 municípios por semana. São vitrines, principalmente no interior. Muitas mulheres produzem na zona rural e encontram ali a forma de vender. Na Caravana Margaridas oferecemos atendimento jurídico, serviços com prefeituras, orientação para marketing e e-commerce e grupos de empreendedoras. Temos parceria com o Sebrae para ensinar desde a embalagem até vendas pela internet. O governador colocou mais de R$ 250 milhões para crédito – e sem avalista. Quem participa dos cursos pode receber kit profissional. Estamos consolidando cursos como cabeleireira completa, para que a mulher tenha autonomia de renda.

E quanto à representatividade feminina em espaços de poder no Espírito Santo?

Ainda é baixa. Menos de 30% nos espaços de poder. Assembleia Legislativa com 9 deputadas já chega perto de 30%, mas Congresso com 15% e Senado com 12% ainda é menos. O Espírito Santo está na 25ª colocação em liderança feminina. E quando fazemos recorte racial, desaparece ainda mais. Temos mulheres liderando OSCs, mulheres indígenas caciques, quilombolas, ciganas, mas na vida pública ainda há dificuldade. Trabalhamos formação de lideranças, palco cultural nas Caravanas, e políticas pensando na interseccionalidade.

Quais as prioridades e garantias de investimento para 2026?

Os Centros de Referência no Enfrentamento à Violência contra as Mulheres são prioridade – com psicólogas, assistentes sociais e educadoras sociais. Mulheres atendidas por outras mulheres. Temos recursos garantidos para manter esses centros conectados às 10 microrregiões. Trabalhamos também captação de recursos, como os do acordo de Mariana/Brumadinho, para apoiar empregabilidade de mulheres afetadas pela tragédia. Saímos de um orçamento de 7 milhões para mais de 30 milhões este ano e pretendemos manter essa média.

Qual legado a senhora acredita estar deixando como primeira secretária de Estado das Mulheres?

Eu fui vice-governadora sem pasta executiva. Levei a pauta das mulheres para o centro do poder. A partir daí, vimos a necessidade de uma pasta estruturada. O legado se baseia em três fatores: decisão política – o governador criou a secretaria; governança – metas, resultados, metodologia; e orçamento – sem recursos, política não se sustenta. Criamos o Observatório das Mulheres, que junto ao Instituto Jones dá números para orientar ações. Esse tripé garante perenidade. Política de Estado, não de governo.

No plano pessoal e político? Como estão os planos para as eleições de 2026?

Gostaria de continuar no Espírito Santo. Trilho um caminho para uma eleição estadual. É uma decisão do grupo. Depois de vice-governadora fui candidata federal; se o grupo entender diferente, estou pronta. Trabalhamos em time, onde o time estiver, estarei para contribuir.

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Diretor de conteúdo – Eduardo Caliman

Jornalista formado pela Ufes (1995), com Master em Jornalismo para Editores pelo CEU/Universidade de Navarra – Espanha. Iniciou a carreira em A Tribuna e depois atuou por 21 anos em A Gazeta, como repórter, editor de Política, coordenador de Reportagens Especiais e editor-executivo. Foi também presidente do Diário Oficial, subsecretário de Comunicação do ES e, de 2018 a 2024, coordenador de comunicação institucional no sistema OAB-ES/CAAES.

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